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A MARATONA COMO METÁFORA DA VIDA -
UM CANTO DOS LIMITES NO TERRITÓRIO DA EMOÇÃO
Daíza de Carvalho LACERDA
Orientadora: Maria Viviane do Amaral Veras
RESUMO: Este trabalho analisa a maratona como metáfora da vida. A corrida de 42.195 metros, um percurso de vida, longo e
desafiador, na canção “Marathon”, da banda de rock canadense Rush, do álbum Power Windows, de 1985, e o desafio da linha de
chegada em duas crônicas de Moacyr Scliar: “Maratona e resiliência” e “A maratona e a vida”. As obras são analisadas à luz das
concepções de Mikhail Bakhtin acerca dos gêneros do discurso e do dialogismo, um conceito seminal para a teoria da intertextualidade,
de Julia Kristeva. O trabalho buscou amparo teórico em gêneros, épocas, autores e locais distintos, mas segundo uma abordagem que
permitisse uma interpretação em um contexto similar: os percalços da corrida longa e as características necessárias para superá-los,
numa correlação do que uma vida pode exigir em sua trajetória.
Palavras-chave: intertextualidade, canção, crônica, metáfora, maratona
Digamos que você esteja correndo e comece a pensar:
Cara, que dor, não aguento mais. Sentir dor é uma
realidade inescapável, mas continuar ou não, suportando,
é algo que cabe ao corredor. Isso em grande parte resume
o aspecto mais importante da realização de uma
maratona.
(Haruki Murakami em “Do que eu falo quando eu falo de
corrida”)
INTRODUÇÃO
A edição de 1993 do minidicionário Aurélio define maratona como “corrida a pé, de longo percurso;
competição esportiva, intelectual, etc.”. Já o Houaiss de 2009 traz descrição semelhante, mas mensurando
o percurso com a informação: “(cerca de 42 km)”. E mais: “qualquer competição de duração prolongada
que exija grande resistência; evento ou atividade de longa duração, com efeito desgastante para os
participantes”.
Para o queniano Eliud Kipchoge, maratona é vida. “Não corro com minhas pernas. Corro com meu
coração e mente”.1
Não são as pernas. É coração e mente. O ar filosófico é uma constante nas palavras do
maior maratonista da atualidade, recordista mundial na distância de 42.195 metros (2:01:39 em Berlim,
2018). Essa definição de maratona revela-se no que relata no documentário Breaking 2, falando sobre a
tentativa, em 6 de maio de 2017, de vencer a distância dentro de 2h. Kipchoge fez em 2:00:25. Em nova
tentativa, em outubro de 2019, torna-se o primeiro homem a percorrer a distância em 1:59:40.
Qual a diferença entre a maratona dos dicionários e a de Kipchoge? Qual o divisor entre uma
experiência de Kipchoge e a de outro ser humano que se disponha a correr tal distância? O que os separa?
O que os une? Que situações aproximam ou distanciam a “ideia” de maratona? Neste trabalho, o desafio é
analisar o contexto da maratona em dois gêneros: canção e crônica, de acordo com a forma como é cantado
e narrado o percurso de 42 km como um percurso de vida.
Inicialmente, serve-nos de amparo teórico o trabalho do pensador russo Mikhail Bakhtin, para quem
é o gênero que dá o “colorido” à palavra que, isolada, pode ter significado neutro:
O gênero do discurso não é uma forma da língua, mas uma forma típica do enunciado;
como tal forma, o gênero inclui certa expressão típica que lhe é inerente. No gênero, a
palavra ganha certa expressão típica. Os gêneros correspondem a situações típicas da
comunicação discursiva, e temas tópicos, por conseguinte, a alguns contatos típicos dos
significados das palavras com a realidade concreta em circunstâncias típicas. Daí a
possibilidade de expressões típicas, que parecem sobrepor-se às palavras. Essa
expressividade típica do gênero não pertence, evidentemente, à palavra enquanto
unidade de língua, não faz parte do seu significado, mas reflete apenas a relação da
palavra e do seu significado com o gênero, isto é, com enunciados típicos. (BAKHTIN,
2016, p. 52)
1 I don’t run with my legs, I run with my heart and mind. (Título da reportagem feita a partir de entrevista com Eliud Kipchoge pelo
site KenyanVibe.com, vide referências).
Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 44
Partindo da formulação de Bakhtin, pode-se pensar no contexto da palavra maratona nos mais
diversos enunciados. Uma busca simples em ferramentas de pesquisa online dará como resultados maratona
de estudos, ou de séries televisivas, sempre se referenciando a algo tido como de longa duração. A
aproximação entre maratona e vida é recorrente – embora ganhe nuances justamente conforme a sua
apresentação – no discurso do queniano Kipchoge, numa canção da banda canadense Rush e nas crônicas
do gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011), e o que se busca, neste trabalho, é uma leitura dessa aproximação
pelo viés da intertextualidade.
PALAVRA CANTADA E PALAVRA CONTADA
Quando Kipchoge diz que maratona é vida, dá um ar quase sagrado a uma metáfora que, se não é
original, foi explorada nas mais diversas formas. Uma delas, na música Marathon,2
da banda Rush, do
álbum Power Windows, de 1985. A letra é do baterista Neil Peart, músico falecido em janeiro de 2020 em
decorrência de um câncer no cérebro, escritor e principal compositor das letras da banda. Não era
maratonista, mas foi ciclista e motociclista de viagens de longa distância, sobre as quais escreveu livros.
Além da letra, a música, com acordes também do vocalista Geddy Lee e do guitarrista Alex Lifeson, é
marcada por alterações no ritmo, além de passagens com batidas progressivas, que em entrevista de 2011
compara a correr uma maratona enquanto resolve uma equação.
Sem mencionar em nenhum momento na letra a palavra marathon, que dá nome à composição, o
trio toca e canta a canção descrevendo, de fato, uma longa corrida e o que ela envolve: a ânsia de chegar,
os obstáculos, a vontade e persistência necessárias, e a glória. Deixa para o trecho final o que seria a
correlação mais evidente do enlace de propósitos da maratona e da vida, citando passagens retiradas de
outros contextos, oportunamente explicados por Peart numa entrevista (1986): First you got to last
(“Primeiro você tem que aguentar”).
A linha de chegada da música é a de largada na crônica do escritor e médico sanitarista Moacyr
Scliar, “Maratona e resiliência.”3
No texto publicado no jornal gaúcho Zero Hora em 24 de maio de 2008,
diferencia resistência de resiliência, enquanto tece comentários sobre a maratona de Nova York, realizada
enquanto esteve na metrópole. Pontua o fato de a longa corrida ter um último colocado e reflete sobre o que
move uma pessoa a buscar uma linha de chegada quando não há ninguém mais atrás dela. Elege a resiliência
que, em sua análise, vai além da resistência, que seria “aguentar o tranco”. Trata-se de crescer diante do
desafio e da crise, ou, usando a concepção da física, o poder de um material voltar à forma anterior após ter
sido deformado por um “tranco”.
Cerca de um ano antes, o escritor havia tratado a mesma temática em “A maratona e a vida”,4
publicada em 26 de maio de 2007. Nessa, porém, resgata a mitologia grega das origens da maratona ao
referenciar os desafios da vida, que por vezes assumem a forma de exercício físico: “A maratona disso é
um clássico e impressionante exemplo. É uma homenagem a Feidípides5
, o soldado grego que correu de
Maratona a Atenas para anunciar a seus conterrâneos a vitória sobre os persas”. E teria morrido em seguida,
como dá conta a lenda. O que faz o escritor relacionar a empreitada da jornada quilométrica à vida, quando
encerra a crônica: “(…) não é só o exercício físico, o lado emocional conta muito, porque, ao fim e ao cabo,
trata-se, como em muitos aspectos de nossa existência, de vencer um desafio. A corrida é a vida. Feidípides
sabia disso muito bem”.
DO DIALOGISMO À INTERTEXTUALIDADE
A maratona enquanto corrida e como cenário da reflexão da trajetória da vida se mostra em tempos
e contextos diferentes nas produções analisadas, mas que “conversam” entre si e são capazes de provocar
diferentes reações/interpretações no leitor ou ouvinte, o que vai ao encontro da análise de Bakhtin (2016):
“todo discurso termina, mas não no vazio, e dá lugar ao discurso do outro (ainda que seja o discurso interior),
à expectativa de resposta, de emoção”.
Essas “conversas” entre textos, às quais podemos chamar de intertextualidade – termo cunhado pela
semioticista e crítica búlgara, Julia Kristeva a partir de sua teoria –, foram antes flagradas no discurso
dialógico de Bakhtin, para quem “falante e compreendedor jamais permanecem cada um em seu próprio
2 Transcrita e traduzida no Anexo 1.
3 Anexo 2.
4 Anexo 3.
5 A origem histórica da maratona também é alvo das mais diversas abordagens, muitas tomadas como lendas. Diante de tantas
inconsistências, em seu livro “Correr”, o médico e maratonista Drauzio Varella dedica alguns capítulos à busca do que seria uma
versão confiável, com base nos escritos de Heródoto. Este trabalho não irá explorar a questão em particular, mas pontuar o dado,
trazido por Varella, de que a ideia da cobertura da distância entre Maratona e Atenas é creditada a Michel Bréal nos primeiros Jogos
Olímpicos modernos, de 1896, em Atenas.
Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 45
mundo; ao contrário, encontram-se num novo, num terceiro mundo, no mundo dos contatos; dirigem-se um
ao outro, entram em ativas relações dialógicas” (BAKHTIN, 2016, p. 113).
As primeiras referências encontram-se em Marxismo e a Filosofia da Linguagem, obra na qual
Bakhtin considera o discurso do mesmo (a própria instância narrativa) e o discurso de outrem, “os
fragmentos discursivos de outras subjetividades que não a do próprio narrador” (ALÓS, 2006, p. 8). A
importância na formulação da intertextualidade está no diálogo além da linguagem do sujeito, numa
“escritura na qual se lê o outro”, de forma que “o dialogismo de Bakhtin concebe a escritura como
subjetividade e comunicabilidade ou, para melhor dizer com Kristeva, como intertextualidade” (NITRINI,
2000 apud ALÓS, 2006, p. 8).
Nas reflexões de Kristeva explicadas por Alós, a intertextualidade se mostra num processo de
interação não só entre textos, mas particularmente com o texto cultural, o texto histórico e o texto social,
indo além das relações dialógicas de Bakhtin. Para a autora, o alcance supera representações de consciências
e subjetividades, estando o próprio intercâmbio semiótico do funcionamento do texto literário, orientado
tanto para o sistema significante no qual se produz quanto para o processo social do qual participa enquanto
discurso (ALÓS, 2006).
Na explanação de Samoyault (2008), Kristeva empresta de Bakhtin a ideia de que todo texto dialoga
com outros textos, embora o linguista russo nunca tivesse usado o termo intertextualidade.
Entretanto, seus estudos sobre o romance (que remontam a fins dos anos 20), originando
as grandes possibilidades de integração do gênero, seus componentes linguísticos,
sociais e culturais, introduziam a ideia de uma multiplicidade de discursos trazida pelas
palavras. O texto aparece então como o lugar de uma troca entre pedaços de enunciados
que ele redistribui ou permuta, construindo um texto novo a partir dos textos anteriores.
Não se trata, a partir daí, de determinar um intertexto qualquer, já que tudo se torna
intertextual; trata-se antes de trabalhar sobre a carga dialógica das palavras e dos textos,
os fragmentos de discursos que cada um deles introduz no diálogo. (SAMOYAULT,
2008, p. 18)
A relação da intertextualidade com a psicanálise também é tratada por Samoyault, quando recorre à
obra de Michel Schneider, Voleurs de mots (1985), na qual “utiliza a psicanálise para apreender as relações
constitutivas do eu e do outro na atividade de leitura-escritura”. Para Schneider, como para Bakhtin, a
alteridade com fins interpretativos é a noção-chave da intertextualidade, de forma que “a ligação da
elaboração do texto com a constituição da personalidade contribui para fazer da intertextualidade um
princípio maior da relação com o outro” (SAMOYAULT, 2008, p. 41), conforme a formulação citada pela
autora:
De que é feito um texto? Fragmentos originais, reuniões singulares, referências,
acidentes, reminiscências, empréstimos voluntários. De que é feita a pessoa? Pedaços
de identificação, imagens incorporadas, traços de caracteres assimilados, o todo (se se
pode dizer assim) formando uma ficção chamada eu. (SCHNEIDER, 1985 apud
SAMOYAULT, 2008, p. 41)
Na defesa da importância da obra de Schneider na dimensão teórica e implicações profundas da
intertextualidade, a autora analisa que, assim como uma pessoa se constitui na relação com o outro, um
texto não existe sozinho: “é carregado de palavras e pensamentos mais ou menos conscientemente roubados,
sentem-se as influências que o subtendem, parece sempre possível nele descobrir-se um subtexto”
(SAMOYAULT, 2008, p. 42).
INSPIRAÇÕES DE NEIL PEART
Considerada a intertextualidade, a análise da música Marathon é feita a partir de algumas
considerações do próprio autor, Neil Peart. Numa entrevista à revista Canadian Composer, em 1986,6
o
baterista falou de sua trajetória com a banda Rush e da interpretação de algumas das canções do álbum
Power Windows, lançado no ano anterior, atendo-se a Marathon como uma mensagem para ele mesmo.
Reflete sobre o triunfo do tempo e a ideia estabelecida de que a vida seria longa o bastante, podendo ser
aproveitada desde que não se queime energia tentando fazer tudo de uma vez (em referência aos versos:
You can do a lot in a lifetime/ if you don’t burn out too fast).
6 A entrevista está transcrita no site http://www.2112.net/powerwindows/transcripts/19860400canadiancomposer.htm, citada aqui
em tradução livre (acesso em 24/05/2019).
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Durante a conversa, o músico pontua duas referências na música. Uma delas é o provérbio chinês
“A jornada de mil milhas começa com um simples passo”, quando justifica que a canção fala de objetivos
individuais e de tentativas de alcançá-los. A outra é um lema creditado a soldados de Napoleão, Il faut
d'abord durer, adaptado para First you’ve got to last (“Primeiro, você tem que durar”), verso que encerra a
canção. Na ocasião, usou a passagem para exemplificar a sobrevivência da banda e como esse conceito,
partindo do lema, norteou escritores como Ernest Hemingway, que consideraria que o mais importante era
manter a reputação e a integridade, de onde provêm os outros frutos. O conceito também inspiraria uma
citação creditada a Jack London: I shall not waste my days trying to prolong them. I shall use my time (“Não
vou perder meus dias tentando prolongá-los. Vou usar meu tempo").7
London é bastante referenciado por Peart no livro Ghost Rider – A estrada da cura, sobre seu período
sabático de viagens de moto após a morte da única filha, em 1997, e da esposa, em 1998. O livro foi lançado
em 2002, e a versão brasileira publicada em 2014 pela editora Belas Letras. Assim como diversas letras do
Rush têm fragmentos abrindo ou encerrando capítulos, um trecho de Marathon encerra o quarto dos dezoito
da obra. Ele escolhe os versos From first to last/ the peak is never passed/ Something always fires the light/
that gets in your eyes (“Do primeiro ao último/ o pico nunca é ultrapassado/ algo sempre acende a luz/ que
atinge seus olhos”).
O desafio de alcançar o pico, ou ponto máximo, se configura também na passagem The heartbreak
climb uphill, no uso de palavras que se tornaram um marco na mais antiga das maratonas, a de Boston,
realizada ininterruptamente todos os anos desde 1897. O percurso dos 42.195 metros é considerado o mais
desafiador entre as majors (as seis maiores maratonas do mundo: Londres, Berlim, Tóquio, Chicago e Nova
York, além de Boston). Apesar da altimetria em declínio, há muitas subidas, entre elas a conhecida como
Heartbreak Hill, um pico no quilômetro 32, onde os participantes, em geral, já chegam fadigados. O culto
à Maratona de Boston não se deve apenas à sua tradição mais do que centenária ou ao reconhecido percurso
desafiador mesmo para os atletas mais experientes, mas à oportunidade de poder corrê-la: nela só são
admitidos corredores que atingiram determinado tempo em sua faixa etária em outras maratonas
chanceladas pelo mundo (como a de Porto Alegre-RS, onde viveu Moacyr Scliar, que é a mais procurada
no Brasil pelo percurso plano e propício a boas marcas de menor tempo). Não basta ter a marca, pois os
candidatos concorrem, ainda, com o tempo dos outros candidatos do grupo etário. A organização só admite
os mais rápidos no limite de vagas.
As observações de Peart na entrevista abordam o sentido da letra, mas ele não se atém à explicação
da forma e à organização dos versos, e considera o modo como ganham vida na voz de Geddy Lee e os
instrumentos de ambos com Alex Lifeson. Caberia a interpretação ao ouvinte, em meio às alternâncias de
ritmo e progressão da letra?
Quem se deu ao trabalho de esclarecer seus métodos não na criação de uma música, mas de um
poema, foi Edgar Allan Poe em A filosofia da composição. Ao explicar o que demandou a escrita de O
Corvo, o escritor norte-americano nascido em Boston elege algumas peças fundamentais. Entre elas estão
a extensão do poema (que deve ser sorvido numa única assentada), a beleza (enquanto efeito de pura
elevação da alma) e a originalidade, o que, de certa forma, contrariaria a intertextualidade. Para Poe,
contudo, a originalidade não se reduz a impulso ou intuição, deve ser buscada trabalhosamente, num alcance
que requer menos invenção do que negação. No percurso deste trabalho, transpondo as “exigências” de Poe
à canção do Rush, pode-se afirmar que o tema não é original. Nem o tema de Marathon, tampouco de outras
músicas da banda, considerando que o trio faz uso constante da intertextualidade, valendo-se de diversas
obras literárias como inspiração para suas canções. No entanto, a banda é reconhecida pela complexidade
de suas composições – razão pela qual pode não ser tão impertinente a breve menção ao poeta –, tendo
ganhando o rótulo de “nerd”, pelo grau de inteligência e dificuldade envolvido no trabalho de composição
e execução.
Ainda que a canção não esteja entre as mais populares da banda, letra e ritmo são capazes de
despertar emoções, sobretudo em quem está envolvido com o tema da maratona, a corrida, ou se identifica
no desafio da maratona da vida. No que concerne ao respaldo para essa identificação, a interpretação
musical é abordada pelo viés filosófico por Sandra Neves Abdo (2000), ao discutir o estatuto hermenêutico
da execução/interpretação musical. Ainda que seus questionamentos e hipóteses se refiram às exigências
de execução ao modo do autor no estudo de música, suas reflexões contribuem para a problemática discutida
por Umberto Eco em Interpretação e Superinterpretação, obra à qual recorre para contextualizar argumentos
como o do filósofo italiano Luigi Pareyson, para quem obra e intérprete são polos da relação interpretativa,
com a intencionalidade da obra revelada quando a intencionalidade do intérprete a capta como tal (ABDO,
2000, p. 20). Numa relação em que não cabe nem a neutralidade e nem a liberdade arbitrária, ele remete a
7
A abordagem está no site http://rushfaclubebr.blogspot.com/2006/01/marathon.html, que se utiliza de várias referências (listadas ao
final da página), incluindo a entrevista em questão (acesso em 24/05/2019).
Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 47
Eco quando este considera que “entre a intenção do autor e o propósito do intérprete existe a intenção do
texto”, determinada pela leitura por parte do leitor (ECO, 1993 apud ABDO, 2000, p. 21).
(COR)RELAÇÕES DE MOACYR SCLIAR
É de modo um tanto descompromissado, como cabe ao gênero crônica, que o médico e escritor
Moacyr Scliar (1937-2011) trata da maratona (e da vida) em dois de seus artigos no jornal Zero Hora, ambos
reunidos na obra póstuma “Território da Emoção”, uma coletânea de crônicas médicas organizada por
Regina Zilberman e publicada em 2013.
Assim como na letra do Rush, o termo endurance é abordado pelo escritor em A maratona e a vida,
de 26 de maio de 2007. Para ele, a palavra “resistência”, que é uma das duas apropriadas para definir o
maratonista, não é adequada para referenciar o termo em inglês que, considera, “implica não apenas a
capacidade física de fazer exercício por períodos relativamente longos de tempo, como também a
disposição emocional para fazê-lo”. Recorre à biologia para a outra palavra, estâmina, a partir da qual lida
com outra metáfora, a da fibra. Ou, uma pessoa de fibra, com “a capacidade de suportar agravos e de
enfrentar desafios”.
Já o fato de uma maratona ter um primeiro e um último colocado (questão também lembrada na
música – from first to last) é um dos motes para a reflexão de Maratona e resiliência, no qual o autor lida
com outro conceito.
Do ponto de vista psicológico, resiliência é a capacidade que tem a pessoa de suportar
o estresse e superá-lo. Portanto, resiliência não é apenas resistência, esta sendo
considerada uma coisa passiva: aguentar o tranco estoicamente é resistência.
Resiliência é isso e mais a capacidade de se reestruturar e de crescer emocionalmente
como resposta ao desafio e à crise, com aumento inclusive da autoestima. E autoestima
é coisa importante na maratona, que é uma competição muito peculiar.
É creditada a Kathrine Switzer a máxima de que na maratona se trata de vencer as adversidades. A
maratonista correu a Maratona de Boston em 1967, quando mulheres não eram aceitas. Inscreveu-se com a
inicial do primeiro nome e o sobrenome. Ao descobrir que se tratava de uma mulher, o organizador da prova
tentou retirá-la, aos empurrões, em cena imortalizada em filmagens e fotografias. Foi auxiliada pelo
treinador e pelo namorado, e concluiu a prova numa passagem tida como crucial para o acesso das mulheres
à tradicional prova.
Se a maratona é sobre adversidades, também é sobre adversários? Scliar pergunta quem é o
adversário do corredor solitário, como é comum aos que optam pela longa distância. E responde: “É aquela
outra pessoa que ele tem dentro de si, e que repete constantemente, numa vozinha debochada, irritante:
você não conseguirá. É o estresse, ao qual o maratonista responde com a resiliência”.
O médico reconhece que a metáfora da maratona com a vida é muito usada, mas ressalva que não
se trata de exagero. Em sua análise, viver é correr, é se estressar. E ser resiliente é preciso, na maratona e
na vida, retomando o conceito da física, da deformação e da recomposição ao estado anterior.
Que o estresse nos atinja, que nos impregne com uma energia negativa, tóxica, é normal.
Mas precisamos aprender a voltar à nossa forma, eliminando de nós os eflúvios
negativos. Precisamos prosseguir rumo à nossa meta. Se somos dos primeiros ou dos
últimos, não importa. O que importa é chegar lá.
Ainterpretação da vida pode ser aprofundada pelas considerações de Wilhem Dilthey, que buscava
garantir um fundamento hermenêutico à compreensão da “vida mesma”, como argumenta Sônia Maria da
Silva Araújo (2007). Dilthey faria emergir o “espírito do tempo”, presente em todas as manifestações
culturais, de forma que, para interpretar uma época ou criação cultural, seria necessário recorrer à História.
“A vida espiritual constitui-se, por assim dizer, na matéria prima da História, porque é ela, manifesta no
Direito, na Religião, na Arte etc., que regula a vida prática e traz à consciência as variações diversas do
homem”, o que torna a História “o pensamento sobre o pensamento, a reflexão da reflexão. Todo este
esforço, pensa Dilthey, ofereceria ao historiador condições de compreender a vida do espírito em sua mais
extensa evolução histórica” (ARAÚJO, 2007, p. 238).
Aautora discorre sobre a crença de Dilthey de que a psicologia seria o elo das “ciências do espírito”,
que abarcam, além da história, as teorias da literatura e da arte, passando pela jurisprudência e teologia. A
psicologia dominaria o “conhecimento sobre o sentimento, a vontade, a dependência, a liberdade, o motivo”,
revelando a vida interior, porque “só ela penetra na zona do sentimento e compreende as ‘experiências do
coração’ que movem a vontade” (ARAÚJO, 2007, p. 241). A análise de Dilthey está em harmonia com as
Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 48
colocações de Scliar, que se vale de conceitos os mais diversos, da física e da biologia, para emoldurar,
numa crônica, um cenário que interpreta fatores concernentes à vida, à vivência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho buscou analisar a metáfora da maratona da vida, partindo de gêneros, épocas, autores
e locais distintos, mas de forma que permitisse a interpretação de um contexto similar: os percalços de uma
corrida longa e as características necessárias para superá-los, numa correlação do que a vida exige em sua
trajetória.
Se Bakhtin e Kristeva explicam as influências entre textos e Poe estabelece regras para uma
composição, a hermenêutica da vida de Dilthey contribui para uma análise que se deixa permear por
sentimentos despertados pelas obras, que ativam referências plurais partindo do “acervo pessoal” de quem
lê ou ouve.
Embora não se atenha a questões de forma e tampouco tenha esgotado as fontes e análises possíveis
para a abordagem, o trabalho buscou pontuar as principais referências na música e nas crônicas tanto com
o tema corrida/vida quanto com relação à influência de outros autores e conceitos de outras áreas do saber
na formulação dessas produções. Trata-se de um recorte particular, subjetivo – deve-se reconhecer –, como
a “peneira do leitor” referenciada por Samoyault (2008), da qual também a intertextualidade é dependente,
tendo um caráter de recepção tanto subjetivo quanto variável, mas, sobretudo, decisivo.
Enfim, se as leituras e releituras fazem emergir no receptor as mais diversas reações diante de seu
passado e aspirações futuras, também são fontes nas quais se busca “uma fórmula para dar sentido à nossa
existência”, como pontua Umberto Eco em Seis passeios pelos bosques da ficção. Eco discorre sobre a
ficção e sobre a tendência humana de transpor obras fictícias para a realidade. Mas seus apontamentos
cabem na análise de produções que falam da vida real e do poder de nortear ações, seja no âmbito
motivacional ou reflexivo.
Para Eco, este trabalho até poderia ser considerado uma superinterpretação, mas sua metáfora do
bosque não foge à essência do que está envolvido em correr uma maratona ou em simplesmente viver.
Assim como o desafio é certo na busca do êxito na maratona e na vida, o bosque tem o seu valor no tortuoso:
“Para se tornar sagrado, um bosque tem de ser emaranhado e retorcido como as florestas dos druidas, e não
organizado como um jardim francês” (ECO, 2009, p. 134).
REFERÊNCIAS
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Performance Musical da UFMG, v. 1, p. 16-24.
ALÓS, A. P. (2006). “Texto literário, texto cultural, intertextualidade”. Revista Virtual de Estudos da
Linguagem – ReVEL, v. 4, n. 6, p. 1-25.
ARAUJO, S. M. S. (2007). “Dilthey e a Hermenêutica da Vida”. Cadernos de Educação (UFPel), v. 28, p.
235-254.
BAKHTIN, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução: Paulo Bezerra. 1. ed., Editora 34, SP.
ECO, U. (2005). Interpretação e Superinterpretação. Tradução: Monica Stahel. 2. Ed, Martins Fontes, SP.
ECO, U. (2009). Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução: Hildegrad Feist, Companhia das Letras,
SP.
FERREIRA, A. B. H. (1993). Minidicionário da Língua Portuguesa. 3a
ed., Nova Fronteira, RJ.
FILHO, S. X. (2018). Boston - A mais longa das maratonas. Porto Alegre-RS: Arquipélago.
NATIONAL GEOGRAPHIC. (2017). Breaking2 | Documentary Special. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=V2ZLG-Fij_4>. Acesso em: 25 jan. 2019.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. (2009). Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Elaborado pelo Instituto
Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. Objetiva, RJ.
KIPCHOGE, E. (2019). Eliud Kipchoge: “I Don’t Run With My Legs, I Run With My Heart And Mind”.
Entrevista concedida ao site Kenyanvibe. Disponível em https://www.kenyanvibe.com/eliud-
kipchoge-i-dont-run-with-my-legs-i-run-with-my-heart-and-mind/ Acesso em 04 mai. 2019.
Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 49
KREWEN, N. (1986). Surviving With Rush - Drummer-lyricist Neil Peart looks forward. Disponível em
<http://www.2112.net/powerwindows/transcripts/19860400canadiancomposer.htm>. Acesso em:
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PEART, N., MARATHON. Intérprete: Rush. In: LEE, G.; PEART, N.; LIFESON, A. (1985). Power
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http://rushfaclubebr.blogspot.com/2006/01/marathon.html Acesso em: 24 mai. 2019.
MURAKAMI, H. (2010). Do que eu falo quando eu falo de corrida: Um relato pessoal. Tradução: Cássio
de Arantes Leite, Alfaguara, RJ.
PEART, N. (2014). Ghost Rider - A estrada da cura. Tradução: Candice Soldatelli, Belas Letras, RS.
PEART, N. (2011). Entrevista. Disponível em https://www.musicradar.com/news/guitars/ interview-rushs-
neil-peart-talks-drum-solos-458100 Acesso em: 12 mar. 2020.
PEART, N. (1986). Entrevista. Surviving with Rush. Disponível em http://www.2112.net/
powerwindows/transcripts/19860400canadiancomposer.htm Acesso em 24 mai. 2019.
POE, E. A. (2011). A filosofia da composição. Tradução: Léa Viveiros de Castro, 7 Letras, RJ.
SAMOYAULT, T. (2018). A intertextualidade. Tradução: Sandra Nitrini. Aderaldo & Rothschild Editores,
SP.
SCLIAR, M. (2013). Território da Emoção: Crônicas de medicina e saúde. Organização e prefácio de
Regina Zilberman. 1. ed., Companhia das Letras, SP.
VARELLA, D. (2015). Correr: O exercício, a cidade e o desafio da maratona. 1. ed. São Paulo: Companhia
das Letras.
Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 50
ANEXO 1
* Disponível em:
https://www.letras.mus.br/rush/34602/traducao.html (acesso 24/05/2019)
MARATHON
It's not how fast you can go
The force goes into the flow
If you pick up the beat
You can forget about the heat
More than just survival
More than just a flash
More than just a dotted line
More than just a dash
It's a test of ultimate will
The heartbreak climb uphill
Got to pick up the pace
If you want to stay in the race
More than just blind ambition
More than just simple greed
More than just a finish line
Must feed this burning need -
In the long run...
From first to last
The peak is never passed
Something always fires the light
That gets in your eyes
One moment's high
And glory rolls on by
Like a streak of lightening
That flashes and fades
In the summer sky
Your meters may overload
You can rest at the side of the road
You can miss a stride
But nobody gets a free ride
More than high performance
More than just a spark
More than just the bottom line
Or a lucky shot in the dark -
In the long run...
You can do a lot in a lifetime
If you don't burn out too fast
You can make the most of the distance
First you need endurance -
First you've got to last...
MARATONA*
Não é a questão de que velocidade você pode chegar
A força tem que fluir
Se você pegar a ritmo
Você pode esquecer do calor
Mais do que apenas sobreviver
Mais do que apenas um clarão
Mais do que apenas um compromisso
Mais do que apenas um ímpeto
É um teste de extremo desejo
A batida do seu coração ao subir montanha acima
Você tem que pegar o passo
Se quiser continuar na corrida
Mais do que apenas uma ambição cega
Mais do que apenas uma simples cobiça
Mais do que apenas a linha de chegada
Você precisa alimentar esta necessidade ardente
No longo percurso
De primeiro para último
O ponto máximo nunca é ultrapassado
Alguma coisa sempre acende a luz
Que chega em seus olhos
A grandeza de um momento
E a glória que chega aos poucos
Como um vestígio de raios
Que lampeja e enfraquece
Nós céus de verão
Seu ritmo pode sobrecarregar
Mas você pode descansar no acostamento
Você pode perder um avanço
Mas ninguem consegue uma carona de graça
Mais do que uma grande performance
Mas do que apenas uma faísca
Mais do que objetivar a chegada
Ou um tiro no escuro
No longo percurso
Você pode fazer muito durante a vida
Se você não desistir facilmente
Você pode fazer o melhor trajeto
Mas primeiro você precisa de resistência
Primeiro você tem que aguentar
Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 51
ANEXO 2
Maratona e resiliência
Moacyr Scliar – Zero Hora - [24/05/2008]
Estive algumas vezes em Nova York no período em que lá se realizava a famosa e tradicional
maratona. Numa dessas vezes, vi, afixado num gigantesco painel, a classificação dos corredores. Eram
milhares, mas todos os nomes estavam ali, e também o lugar em que tinham chegado: o primeiro colocado,
o segundo, o terceiro - e o último. Sim, havia um último lugar. E isso me impressionou. O que faz um
corredor que está em último lugar numa prova, que já não tem mais ninguém atrás de si, esforçar-se para
chegar à linha de chegada? Que energia move o maratonista?
Há um termo que atualmente se aplica muito a essa e outras situações: resiliência. Em física,
resiliência é a propriedade que tem um material de, quando deformado elasticamente, absorver energia, que
é liberada quando esse material volta à forma anterior. Do ponto de vista psicológico, resiliência é a
capacidade que tem a pessoa de suportar o estresse e superá-lo. Portanto, resiliência não é apenas resistência,
esta sendo considerada uma coisa passiva: agüentar o tranco estoicamente é resistência. Resiliência é isso
e mais a capacidade de se reestruturar e de crescer emocionalmente como resposta ao desafio e à crise, com
aumento inclusive da auto-estima. E auto-estima é coisa importante na maratona, que é uma competição
muito peculiar. Claro, existem aqueles que podem ser considerados adversários, os outros corredores. Mas
os corredores de longos percursos freqüentemente correm sozinhos, e o fazem de forma intensamente
concentrada como a gente pode constatar, observado a fisionomia deles. Quem é o adversário do corredor
solitário? É aquela outra pessoa que ele tem dentro de si, e que repete constantemente, numa vozinha
debochada, irritante: você não conseguirá. É o estresse, ao qual o maratonista responde com a resiliência.
Diz o maratonista inglês Gareth Hopkins que a corrida é uma oportunidade para se crescer como pessoa.
É um exagero comparar a vida a uma maratona? Não, não é. Na verdade, é até uma metáfora
constantemente usada. Viver é correr (mesmo quando ficamos presos no trânsito). Viver é se estressar. Mas
assim como precisamos de resiliência para a maratona, precisamos de resiliência na vida. Que o estresse
nos atinja, que nos impregne com uma energia negativa, tóxica, é normal. Mas precisamos aprender a voltar
à nossa forma, eliminando de nós os eflúvios negativos. Precisamos prosseguir rumo à nossa meta. Se
somos dos primeiros ou dos últimos, não importa. O que importa é chegar lá.
Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 52
ANEXO 3
A maratona e a vida
Moacyr Scliar – Zero Hora - [26/05/2007]
Meu amigo, o escritor Carlos Stein, é autor de um conto impressionante, escrito há vários anos.
Narra a história de um homem que se propõe a atravessar a nado um rio até uma ilha. O desafio é excessivo,
o nadador quase sucumbe no meio do caminho, mas finalmente chega lá. E, tendo chegado, descansa um
pouco e se atira no rio: vai enfrentar de novo o mesmo desafio.
Desafios não faltam em nossa vida e muitas vezes assumem a forma de exercício físico, de prática
esportiva. A maratona disso é um clássico e impressionante exemplo. É uma homenagem a Feidípides, o
soldado grego que correu de Maratona a Atenas para anunciar a seus conterrâneos a vitória sobre os persas.
Ao longo do tempo, Feidípides se constituiu em modelo para atletas sem conta. Alguns se tornaram lendas
vivas, como o etíope Abebe Bikila, que corria de pés descalços, e Paul Piplani, um bioquímico que vive no
Arizona e que já correu seiscentas maratonas, arrecadando fundos para uma entidade que ajuda doentes
neurológicos. No Brasil, Piplani tem vários seguidores: o escritor Alexandru Solomon, por exemplo,
regularmente vem de São Paulo para correr a maratona em Porto Alegre.
Duas palavras definem o maratonista. A primeira é “resistência”, uma tradução não muito
satisfatória para o termo inglês “endurance”. Endurance implica não apenas a capacidade física de fazer
exercício por períodos relativamente longos de tempo, como também a disposição emocional para fazê-lo.
A outra palavra é “estâmina”, que tem duplo significado: em biologia, designa aquilo que dá
sustentação a uma estrutura orgânica, como os ossos de nosso corpo e o lenho das árvores. Metaforicamente,
estâmina designa a nossa fibra, a capacidade de suportar agravos e de enfrentar desafios. “Fibra”, aliás, é
um excelente termo para corredores, sobretudo os nordestinos e os quenianos: o corpo deles é seco, fibroso.
Nada de massas musculares proeminentes, porque eles não estão concorrendo ao título de Mr. América.
São músculos modestos, mas confiáveis, que aguentarão a dura prova.
Mas não só de músculos (e de ossos e tendões) é feito o maratonista. Os aspectos emocionais
também pesam. Em que pensa um maratonista quando corre? Há estudos e recomendações a respeito. Os
pensamentos podem ser dissociativos, aqueles que tendem a “distrair” o corredor: um trabalho aconselha
contar os carros azuis que a pessoa vê no caminho ou o número de cães. Ou podem ser associativos, focados,
por exemplo, no ritmo respiratório (“Cada vez que você expira, tente imaginar a tensão abandonando seu
corpo”), ou o maratonista pode dizer a si próprio coisas encorajadoras, positivas. As pesquisas mostram que
os maratonistas amadores preferem a dissociação, enquanto os profissionais escolhem a associação. De
qualquer modo, a conclusão se impõe: não é só o exercício físico, o lado emocional conta muito, porque,
ao fim e ao cabo, trata-se, como em muitos aspectos de nossa existência, de vencer um desafio. A corrida é
a vida. Feidípides sabia disso muito bem.

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A maratona como metáfora da vida em canção e crônica

  • 1. A MARATONA COMO METÁFORA DA VIDA - UM CANTO DOS LIMITES NO TERRITÓRIO DA EMOÇÃO Daíza de Carvalho LACERDA Orientadora: Maria Viviane do Amaral Veras RESUMO: Este trabalho analisa a maratona como metáfora da vida. A corrida de 42.195 metros, um percurso de vida, longo e desafiador, na canção “Marathon”, da banda de rock canadense Rush, do álbum Power Windows, de 1985, e o desafio da linha de chegada em duas crônicas de Moacyr Scliar: “Maratona e resiliência” e “A maratona e a vida”. As obras são analisadas à luz das concepções de Mikhail Bakhtin acerca dos gêneros do discurso e do dialogismo, um conceito seminal para a teoria da intertextualidade, de Julia Kristeva. O trabalho buscou amparo teórico em gêneros, épocas, autores e locais distintos, mas segundo uma abordagem que permitisse uma interpretação em um contexto similar: os percalços da corrida longa e as características necessárias para superá-los, numa correlação do que uma vida pode exigir em sua trajetória. Palavras-chave: intertextualidade, canção, crônica, metáfora, maratona Digamos que você esteja correndo e comece a pensar: Cara, que dor, não aguento mais. Sentir dor é uma realidade inescapável, mas continuar ou não, suportando, é algo que cabe ao corredor. Isso em grande parte resume o aspecto mais importante da realização de uma maratona. (Haruki Murakami em “Do que eu falo quando eu falo de corrida”) INTRODUÇÃO A edição de 1993 do minidicionário Aurélio define maratona como “corrida a pé, de longo percurso; competição esportiva, intelectual, etc.”. Já o Houaiss de 2009 traz descrição semelhante, mas mensurando o percurso com a informação: “(cerca de 42 km)”. E mais: “qualquer competição de duração prolongada que exija grande resistência; evento ou atividade de longa duração, com efeito desgastante para os participantes”. Para o queniano Eliud Kipchoge, maratona é vida. “Não corro com minhas pernas. Corro com meu coração e mente”.1 Não são as pernas. É coração e mente. O ar filosófico é uma constante nas palavras do maior maratonista da atualidade, recordista mundial na distância de 42.195 metros (2:01:39 em Berlim, 2018). Essa definição de maratona revela-se no que relata no documentário Breaking 2, falando sobre a tentativa, em 6 de maio de 2017, de vencer a distância dentro de 2h. Kipchoge fez em 2:00:25. Em nova tentativa, em outubro de 2019, torna-se o primeiro homem a percorrer a distância em 1:59:40. Qual a diferença entre a maratona dos dicionários e a de Kipchoge? Qual o divisor entre uma experiência de Kipchoge e a de outro ser humano que se disponha a correr tal distância? O que os separa? O que os une? Que situações aproximam ou distanciam a “ideia” de maratona? Neste trabalho, o desafio é analisar o contexto da maratona em dois gêneros: canção e crônica, de acordo com a forma como é cantado e narrado o percurso de 42 km como um percurso de vida. Inicialmente, serve-nos de amparo teórico o trabalho do pensador russo Mikhail Bakhtin, para quem é o gênero que dá o “colorido” à palavra que, isolada, pode ter significado neutro: O gênero do discurso não é uma forma da língua, mas uma forma típica do enunciado; como tal forma, o gênero inclui certa expressão típica que lhe é inerente. No gênero, a palavra ganha certa expressão típica. Os gêneros correspondem a situações típicas da comunicação discursiva, e temas tópicos, por conseguinte, a alguns contatos típicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstâncias típicas. Daí a possibilidade de expressões típicas, que parecem sobrepor-se às palavras. Essa expressividade típica do gênero não pertence, evidentemente, à palavra enquanto unidade de língua, não faz parte do seu significado, mas reflete apenas a relação da palavra e do seu significado com o gênero, isto é, com enunciados típicos. (BAKHTIN, 2016, p. 52) 1 I don’t run with my legs, I run with my heart and mind. (Título da reportagem feita a partir de entrevista com Eliud Kipchoge pelo site KenyanVibe.com, vide referências).
  • 2. Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 44 Partindo da formulação de Bakhtin, pode-se pensar no contexto da palavra maratona nos mais diversos enunciados. Uma busca simples em ferramentas de pesquisa online dará como resultados maratona de estudos, ou de séries televisivas, sempre se referenciando a algo tido como de longa duração. A aproximação entre maratona e vida é recorrente – embora ganhe nuances justamente conforme a sua apresentação – no discurso do queniano Kipchoge, numa canção da banda canadense Rush e nas crônicas do gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011), e o que se busca, neste trabalho, é uma leitura dessa aproximação pelo viés da intertextualidade. PALAVRA CANTADA E PALAVRA CONTADA Quando Kipchoge diz que maratona é vida, dá um ar quase sagrado a uma metáfora que, se não é original, foi explorada nas mais diversas formas. Uma delas, na música Marathon,2 da banda Rush, do álbum Power Windows, de 1985. A letra é do baterista Neil Peart, músico falecido em janeiro de 2020 em decorrência de um câncer no cérebro, escritor e principal compositor das letras da banda. Não era maratonista, mas foi ciclista e motociclista de viagens de longa distância, sobre as quais escreveu livros. Além da letra, a música, com acordes também do vocalista Geddy Lee e do guitarrista Alex Lifeson, é marcada por alterações no ritmo, além de passagens com batidas progressivas, que em entrevista de 2011 compara a correr uma maratona enquanto resolve uma equação. Sem mencionar em nenhum momento na letra a palavra marathon, que dá nome à composição, o trio toca e canta a canção descrevendo, de fato, uma longa corrida e o que ela envolve: a ânsia de chegar, os obstáculos, a vontade e persistência necessárias, e a glória. Deixa para o trecho final o que seria a correlação mais evidente do enlace de propósitos da maratona e da vida, citando passagens retiradas de outros contextos, oportunamente explicados por Peart numa entrevista (1986): First you got to last (“Primeiro você tem que aguentar”). A linha de chegada da música é a de largada na crônica do escritor e médico sanitarista Moacyr Scliar, “Maratona e resiliência.”3 No texto publicado no jornal gaúcho Zero Hora em 24 de maio de 2008, diferencia resistência de resiliência, enquanto tece comentários sobre a maratona de Nova York, realizada enquanto esteve na metrópole. Pontua o fato de a longa corrida ter um último colocado e reflete sobre o que move uma pessoa a buscar uma linha de chegada quando não há ninguém mais atrás dela. Elege a resiliência que, em sua análise, vai além da resistência, que seria “aguentar o tranco”. Trata-se de crescer diante do desafio e da crise, ou, usando a concepção da física, o poder de um material voltar à forma anterior após ter sido deformado por um “tranco”. Cerca de um ano antes, o escritor havia tratado a mesma temática em “A maratona e a vida”,4 publicada em 26 de maio de 2007. Nessa, porém, resgata a mitologia grega das origens da maratona ao referenciar os desafios da vida, que por vezes assumem a forma de exercício físico: “A maratona disso é um clássico e impressionante exemplo. É uma homenagem a Feidípides5 , o soldado grego que correu de Maratona a Atenas para anunciar a seus conterrâneos a vitória sobre os persas”. E teria morrido em seguida, como dá conta a lenda. O que faz o escritor relacionar a empreitada da jornada quilométrica à vida, quando encerra a crônica: “(…) não é só o exercício físico, o lado emocional conta muito, porque, ao fim e ao cabo, trata-se, como em muitos aspectos de nossa existência, de vencer um desafio. A corrida é a vida. Feidípides sabia disso muito bem”. DO DIALOGISMO À INTERTEXTUALIDADE A maratona enquanto corrida e como cenário da reflexão da trajetória da vida se mostra em tempos e contextos diferentes nas produções analisadas, mas que “conversam” entre si e são capazes de provocar diferentes reações/interpretações no leitor ou ouvinte, o que vai ao encontro da análise de Bakhtin (2016): “todo discurso termina, mas não no vazio, e dá lugar ao discurso do outro (ainda que seja o discurso interior), à expectativa de resposta, de emoção”. Essas “conversas” entre textos, às quais podemos chamar de intertextualidade – termo cunhado pela semioticista e crítica búlgara, Julia Kristeva a partir de sua teoria –, foram antes flagradas no discurso dialógico de Bakhtin, para quem “falante e compreendedor jamais permanecem cada um em seu próprio 2 Transcrita e traduzida no Anexo 1. 3 Anexo 2. 4 Anexo 3. 5 A origem histórica da maratona também é alvo das mais diversas abordagens, muitas tomadas como lendas. Diante de tantas inconsistências, em seu livro “Correr”, o médico e maratonista Drauzio Varella dedica alguns capítulos à busca do que seria uma versão confiável, com base nos escritos de Heródoto. Este trabalho não irá explorar a questão em particular, mas pontuar o dado, trazido por Varella, de que a ideia da cobertura da distância entre Maratona e Atenas é creditada a Michel Bréal nos primeiros Jogos Olímpicos modernos, de 1896, em Atenas.
  • 3. Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 45 mundo; ao contrário, encontram-se num novo, num terceiro mundo, no mundo dos contatos; dirigem-se um ao outro, entram em ativas relações dialógicas” (BAKHTIN, 2016, p. 113). As primeiras referências encontram-se em Marxismo e a Filosofia da Linguagem, obra na qual Bakhtin considera o discurso do mesmo (a própria instância narrativa) e o discurso de outrem, “os fragmentos discursivos de outras subjetividades que não a do próprio narrador” (ALÓS, 2006, p. 8). A importância na formulação da intertextualidade está no diálogo além da linguagem do sujeito, numa “escritura na qual se lê o outro”, de forma que “o dialogismo de Bakhtin concebe a escritura como subjetividade e comunicabilidade ou, para melhor dizer com Kristeva, como intertextualidade” (NITRINI, 2000 apud ALÓS, 2006, p. 8). Nas reflexões de Kristeva explicadas por Alós, a intertextualidade se mostra num processo de interação não só entre textos, mas particularmente com o texto cultural, o texto histórico e o texto social, indo além das relações dialógicas de Bakhtin. Para a autora, o alcance supera representações de consciências e subjetividades, estando o próprio intercâmbio semiótico do funcionamento do texto literário, orientado tanto para o sistema significante no qual se produz quanto para o processo social do qual participa enquanto discurso (ALÓS, 2006). Na explanação de Samoyault (2008), Kristeva empresta de Bakhtin a ideia de que todo texto dialoga com outros textos, embora o linguista russo nunca tivesse usado o termo intertextualidade. Entretanto, seus estudos sobre o romance (que remontam a fins dos anos 20), originando as grandes possibilidades de integração do gênero, seus componentes linguísticos, sociais e culturais, introduziam a ideia de uma multiplicidade de discursos trazida pelas palavras. O texto aparece então como o lugar de uma troca entre pedaços de enunciados que ele redistribui ou permuta, construindo um texto novo a partir dos textos anteriores. Não se trata, a partir daí, de determinar um intertexto qualquer, já que tudo se torna intertextual; trata-se antes de trabalhar sobre a carga dialógica das palavras e dos textos, os fragmentos de discursos que cada um deles introduz no diálogo. (SAMOYAULT, 2008, p. 18) A relação da intertextualidade com a psicanálise também é tratada por Samoyault, quando recorre à obra de Michel Schneider, Voleurs de mots (1985), na qual “utiliza a psicanálise para apreender as relações constitutivas do eu e do outro na atividade de leitura-escritura”. Para Schneider, como para Bakhtin, a alteridade com fins interpretativos é a noção-chave da intertextualidade, de forma que “a ligação da elaboração do texto com a constituição da personalidade contribui para fazer da intertextualidade um princípio maior da relação com o outro” (SAMOYAULT, 2008, p. 41), conforme a formulação citada pela autora: De que é feito um texto? Fragmentos originais, reuniões singulares, referências, acidentes, reminiscências, empréstimos voluntários. De que é feita a pessoa? Pedaços de identificação, imagens incorporadas, traços de caracteres assimilados, o todo (se se pode dizer assim) formando uma ficção chamada eu. (SCHNEIDER, 1985 apud SAMOYAULT, 2008, p. 41) Na defesa da importância da obra de Schneider na dimensão teórica e implicações profundas da intertextualidade, a autora analisa que, assim como uma pessoa se constitui na relação com o outro, um texto não existe sozinho: “é carregado de palavras e pensamentos mais ou menos conscientemente roubados, sentem-se as influências que o subtendem, parece sempre possível nele descobrir-se um subtexto” (SAMOYAULT, 2008, p. 42). INSPIRAÇÕES DE NEIL PEART Considerada a intertextualidade, a análise da música Marathon é feita a partir de algumas considerações do próprio autor, Neil Peart. Numa entrevista à revista Canadian Composer, em 1986,6 o baterista falou de sua trajetória com a banda Rush e da interpretação de algumas das canções do álbum Power Windows, lançado no ano anterior, atendo-se a Marathon como uma mensagem para ele mesmo. Reflete sobre o triunfo do tempo e a ideia estabelecida de que a vida seria longa o bastante, podendo ser aproveitada desde que não se queime energia tentando fazer tudo de uma vez (em referência aos versos: You can do a lot in a lifetime/ if you don’t burn out too fast). 6 A entrevista está transcrita no site http://www.2112.net/powerwindows/transcripts/19860400canadiancomposer.htm, citada aqui em tradução livre (acesso em 24/05/2019).
  • 4. Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 46 Durante a conversa, o músico pontua duas referências na música. Uma delas é o provérbio chinês “A jornada de mil milhas começa com um simples passo”, quando justifica que a canção fala de objetivos individuais e de tentativas de alcançá-los. A outra é um lema creditado a soldados de Napoleão, Il faut d'abord durer, adaptado para First you’ve got to last (“Primeiro, você tem que durar”), verso que encerra a canção. Na ocasião, usou a passagem para exemplificar a sobrevivência da banda e como esse conceito, partindo do lema, norteou escritores como Ernest Hemingway, que consideraria que o mais importante era manter a reputação e a integridade, de onde provêm os outros frutos. O conceito também inspiraria uma citação creditada a Jack London: I shall not waste my days trying to prolong them. I shall use my time (“Não vou perder meus dias tentando prolongá-los. Vou usar meu tempo").7 London é bastante referenciado por Peart no livro Ghost Rider – A estrada da cura, sobre seu período sabático de viagens de moto após a morte da única filha, em 1997, e da esposa, em 1998. O livro foi lançado em 2002, e a versão brasileira publicada em 2014 pela editora Belas Letras. Assim como diversas letras do Rush têm fragmentos abrindo ou encerrando capítulos, um trecho de Marathon encerra o quarto dos dezoito da obra. Ele escolhe os versos From first to last/ the peak is never passed/ Something always fires the light/ that gets in your eyes (“Do primeiro ao último/ o pico nunca é ultrapassado/ algo sempre acende a luz/ que atinge seus olhos”). O desafio de alcançar o pico, ou ponto máximo, se configura também na passagem The heartbreak climb uphill, no uso de palavras que se tornaram um marco na mais antiga das maratonas, a de Boston, realizada ininterruptamente todos os anos desde 1897. O percurso dos 42.195 metros é considerado o mais desafiador entre as majors (as seis maiores maratonas do mundo: Londres, Berlim, Tóquio, Chicago e Nova York, além de Boston). Apesar da altimetria em declínio, há muitas subidas, entre elas a conhecida como Heartbreak Hill, um pico no quilômetro 32, onde os participantes, em geral, já chegam fadigados. O culto à Maratona de Boston não se deve apenas à sua tradição mais do que centenária ou ao reconhecido percurso desafiador mesmo para os atletas mais experientes, mas à oportunidade de poder corrê-la: nela só são admitidos corredores que atingiram determinado tempo em sua faixa etária em outras maratonas chanceladas pelo mundo (como a de Porto Alegre-RS, onde viveu Moacyr Scliar, que é a mais procurada no Brasil pelo percurso plano e propício a boas marcas de menor tempo). Não basta ter a marca, pois os candidatos concorrem, ainda, com o tempo dos outros candidatos do grupo etário. A organização só admite os mais rápidos no limite de vagas. As observações de Peart na entrevista abordam o sentido da letra, mas ele não se atém à explicação da forma e à organização dos versos, e considera o modo como ganham vida na voz de Geddy Lee e os instrumentos de ambos com Alex Lifeson. Caberia a interpretação ao ouvinte, em meio às alternâncias de ritmo e progressão da letra? Quem se deu ao trabalho de esclarecer seus métodos não na criação de uma música, mas de um poema, foi Edgar Allan Poe em A filosofia da composição. Ao explicar o que demandou a escrita de O Corvo, o escritor norte-americano nascido em Boston elege algumas peças fundamentais. Entre elas estão a extensão do poema (que deve ser sorvido numa única assentada), a beleza (enquanto efeito de pura elevação da alma) e a originalidade, o que, de certa forma, contrariaria a intertextualidade. Para Poe, contudo, a originalidade não se reduz a impulso ou intuição, deve ser buscada trabalhosamente, num alcance que requer menos invenção do que negação. No percurso deste trabalho, transpondo as “exigências” de Poe à canção do Rush, pode-se afirmar que o tema não é original. Nem o tema de Marathon, tampouco de outras músicas da banda, considerando que o trio faz uso constante da intertextualidade, valendo-se de diversas obras literárias como inspiração para suas canções. No entanto, a banda é reconhecida pela complexidade de suas composições – razão pela qual pode não ser tão impertinente a breve menção ao poeta –, tendo ganhando o rótulo de “nerd”, pelo grau de inteligência e dificuldade envolvido no trabalho de composição e execução. Ainda que a canção não esteja entre as mais populares da banda, letra e ritmo são capazes de despertar emoções, sobretudo em quem está envolvido com o tema da maratona, a corrida, ou se identifica no desafio da maratona da vida. No que concerne ao respaldo para essa identificação, a interpretação musical é abordada pelo viés filosófico por Sandra Neves Abdo (2000), ao discutir o estatuto hermenêutico da execução/interpretação musical. Ainda que seus questionamentos e hipóteses se refiram às exigências de execução ao modo do autor no estudo de música, suas reflexões contribuem para a problemática discutida por Umberto Eco em Interpretação e Superinterpretação, obra à qual recorre para contextualizar argumentos como o do filósofo italiano Luigi Pareyson, para quem obra e intérprete são polos da relação interpretativa, com a intencionalidade da obra revelada quando a intencionalidade do intérprete a capta como tal (ABDO, 2000, p. 20). Numa relação em que não cabe nem a neutralidade e nem a liberdade arbitrária, ele remete a 7 A abordagem está no site http://rushfaclubebr.blogspot.com/2006/01/marathon.html, que se utiliza de várias referências (listadas ao final da página), incluindo a entrevista em questão (acesso em 24/05/2019).
  • 5. Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 47 Eco quando este considera que “entre a intenção do autor e o propósito do intérprete existe a intenção do texto”, determinada pela leitura por parte do leitor (ECO, 1993 apud ABDO, 2000, p. 21). (COR)RELAÇÕES DE MOACYR SCLIAR É de modo um tanto descompromissado, como cabe ao gênero crônica, que o médico e escritor Moacyr Scliar (1937-2011) trata da maratona (e da vida) em dois de seus artigos no jornal Zero Hora, ambos reunidos na obra póstuma “Território da Emoção”, uma coletânea de crônicas médicas organizada por Regina Zilberman e publicada em 2013. Assim como na letra do Rush, o termo endurance é abordado pelo escritor em A maratona e a vida, de 26 de maio de 2007. Para ele, a palavra “resistência”, que é uma das duas apropriadas para definir o maratonista, não é adequada para referenciar o termo em inglês que, considera, “implica não apenas a capacidade física de fazer exercício por períodos relativamente longos de tempo, como também a disposição emocional para fazê-lo”. Recorre à biologia para a outra palavra, estâmina, a partir da qual lida com outra metáfora, a da fibra. Ou, uma pessoa de fibra, com “a capacidade de suportar agravos e de enfrentar desafios”. Já o fato de uma maratona ter um primeiro e um último colocado (questão também lembrada na música – from first to last) é um dos motes para a reflexão de Maratona e resiliência, no qual o autor lida com outro conceito. Do ponto de vista psicológico, resiliência é a capacidade que tem a pessoa de suportar o estresse e superá-lo. Portanto, resiliência não é apenas resistência, esta sendo considerada uma coisa passiva: aguentar o tranco estoicamente é resistência. Resiliência é isso e mais a capacidade de se reestruturar e de crescer emocionalmente como resposta ao desafio e à crise, com aumento inclusive da autoestima. E autoestima é coisa importante na maratona, que é uma competição muito peculiar. É creditada a Kathrine Switzer a máxima de que na maratona se trata de vencer as adversidades. A maratonista correu a Maratona de Boston em 1967, quando mulheres não eram aceitas. Inscreveu-se com a inicial do primeiro nome e o sobrenome. Ao descobrir que se tratava de uma mulher, o organizador da prova tentou retirá-la, aos empurrões, em cena imortalizada em filmagens e fotografias. Foi auxiliada pelo treinador e pelo namorado, e concluiu a prova numa passagem tida como crucial para o acesso das mulheres à tradicional prova. Se a maratona é sobre adversidades, também é sobre adversários? Scliar pergunta quem é o adversário do corredor solitário, como é comum aos que optam pela longa distância. E responde: “É aquela outra pessoa que ele tem dentro de si, e que repete constantemente, numa vozinha debochada, irritante: você não conseguirá. É o estresse, ao qual o maratonista responde com a resiliência”. O médico reconhece que a metáfora da maratona com a vida é muito usada, mas ressalva que não se trata de exagero. Em sua análise, viver é correr, é se estressar. E ser resiliente é preciso, na maratona e na vida, retomando o conceito da física, da deformação e da recomposição ao estado anterior. Que o estresse nos atinja, que nos impregne com uma energia negativa, tóxica, é normal. Mas precisamos aprender a voltar à nossa forma, eliminando de nós os eflúvios negativos. Precisamos prosseguir rumo à nossa meta. Se somos dos primeiros ou dos últimos, não importa. O que importa é chegar lá. Ainterpretação da vida pode ser aprofundada pelas considerações de Wilhem Dilthey, que buscava garantir um fundamento hermenêutico à compreensão da “vida mesma”, como argumenta Sônia Maria da Silva Araújo (2007). Dilthey faria emergir o “espírito do tempo”, presente em todas as manifestações culturais, de forma que, para interpretar uma época ou criação cultural, seria necessário recorrer à História. “A vida espiritual constitui-se, por assim dizer, na matéria prima da História, porque é ela, manifesta no Direito, na Religião, na Arte etc., que regula a vida prática e traz à consciência as variações diversas do homem”, o que torna a História “o pensamento sobre o pensamento, a reflexão da reflexão. Todo este esforço, pensa Dilthey, ofereceria ao historiador condições de compreender a vida do espírito em sua mais extensa evolução histórica” (ARAÚJO, 2007, p. 238). Aautora discorre sobre a crença de Dilthey de que a psicologia seria o elo das “ciências do espírito”, que abarcam, além da história, as teorias da literatura e da arte, passando pela jurisprudência e teologia. A psicologia dominaria o “conhecimento sobre o sentimento, a vontade, a dependência, a liberdade, o motivo”, revelando a vida interior, porque “só ela penetra na zona do sentimento e compreende as ‘experiências do coração’ que movem a vontade” (ARAÚJO, 2007, p. 241). A análise de Dilthey está em harmonia com as
  • 6. Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 48 colocações de Scliar, que se vale de conceitos os mais diversos, da física e da biologia, para emoldurar, numa crônica, um cenário que interpreta fatores concernentes à vida, à vivência. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho buscou analisar a metáfora da maratona da vida, partindo de gêneros, épocas, autores e locais distintos, mas de forma que permitisse a interpretação de um contexto similar: os percalços de uma corrida longa e as características necessárias para superá-los, numa correlação do que a vida exige em sua trajetória. Se Bakhtin e Kristeva explicam as influências entre textos e Poe estabelece regras para uma composição, a hermenêutica da vida de Dilthey contribui para uma análise que se deixa permear por sentimentos despertados pelas obras, que ativam referências plurais partindo do “acervo pessoal” de quem lê ou ouve. Embora não se atenha a questões de forma e tampouco tenha esgotado as fontes e análises possíveis para a abordagem, o trabalho buscou pontuar as principais referências na música e nas crônicas tanto com o tema corrida/vida quanto com relação à influência de outros autores e conceitos de outras áreas do saber na formulação dessas produções. Trata-se de um recorte particular, subjetivo – deve-se reconhecer –, como a “peneira do leitor” referenciada por Samoyault (2008), da qual também a intertextualidade é dependente, tendo um caráter de recepção tanto subjetivo quanto variável, mas, sobretudo, decisivo. Enfim, se as leituras e releituras fazem emergir no receptor as mais diversas reações diante de seu passado e aspirações futuras, também são fontes nas quais se busca “uma fórmula para dar sentido à nossa existência”, como pontua Umberto Eco em Seis passeios pelos bosques da ficção. Eco discorre sobre a ficção e sobre a tendência humana de transpor obras fictícias para a realidade. Mas seus apontamentos cabem na análise de produções que falam da vida real e do poder de nortear ações, seja no âmbito motivacional ou reflexivo. Para Eco, este trabalho até poderia ser considerado uma superinterpretação, mas sua metáfora do bosque não foge à essência do que está envolvido em correr uma maratona ou em simplesmente viver. Assim como o desafio é certo na busca do êxito na maratona e na vida, o bosque tem o seu valor no tortuoso: “Para se tornar sagrado, um bosque tem de ser emaranhado e retorcido como as florestas dos druidas, e não organizado como um jardim francês” (ECO, 2009, p. 134). REFERÊNCIAS ABDO, S. N. (2000). “Execução/Interpretação musical: uma abordagem filosófica”. Per Musi - Revista de Performance Musical da UFMG, v. 1, p. 16-24. ALÓS, A. P. (2006). “Texto literário, texto cultural, intertextualidade”. Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL, v. 4, n. 6, p. 1-25. ARAUJO, S. M. S. (2007). “Dilthey e a Hermenêutica da Vida”. Cadernos de Educação (UFPel), v. 28, p. 235-254. BAKHTIN, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução: Paulo Bezerra. 1. ed., Editora 34, SP. ECO, U. (2005). Interpretação e Superinterpretação. Tradução: Monica Stahel. 2. Ed, Martins Fontes, SP. ECO, U. (2009). Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução: Hildegrad Feist, Companhia das Letras, SP. FERREIRA, A. B. H. (1993). Minidicionário da Língua Portuguesa. 3a ed., Nova Fronteira, RJ. FILHO, S. X. (2018). Boston - A mais longa das maratonas. Porto Alegre-RS: Arquipélago. NATIONAL GEOGRAPHIC. (2017). Breaking2 | Documentary Special. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=V2ZLG-Fij_4>. Acesso em: 25 jan. 2019. HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. (2009). Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Elaborado pelo Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. Objetiva, RJ. KIPCHOGE, E. (2019). Eliud Kipchoge: “I Don’t Run With My Legs, I Run With My Heart And Mind”. Entrevista concedida ao site Kenyanvibe. Disponível em https://www.kenyanvibe.com/eliud- kipchoge-i-dont-run-with-my-legs-i-run-with-my-heart-and-mind/ Acesso em 04 mai. 2019.
  • 7. Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 49 KREWEN, N. (1986). Surviving With Rush - Drummer-lyricist Neil Peart looks forward. Disponível em <http://www.2112.net/powerwindows/transcripts/19860400canadiancomposer.htm>. Acesso em: 24 mai. 2019. PEART, N., MARATHON. Intérprete: Rush. In: LEE, G.; PEART, N.; LIFESON, A. (1985). Power Windows. Mercury, EUA. Faixa 4. RUSH Fã-clube do Brasil. Marathon (reprodução e tradução). Disponível em http://rushfaclubebr.blogspot.com/2006/01/marathon.html Acesso em: 24 mai. 2019. MURAKAMI, H. (2010). Do que eu falo quando eu falo de corrida: Um relato pessoal. Tradução: Cássio de Arantes Leite, Alfaguara, RJ. PEART, N. (2014). Ghost Rider - A estrada da cura. Tradução: Candice Soldatelli, Belas Letras, RS. PEART, N. (2011). Entrevista. Disponível em https://www.musicradar.com/news/guitars/ interview-rushs- neil-peart-talks-drum-solos-458100 Acesso em: 12 mar. 2020. PEART, N. (1986). Entrevista. Surviving with Rush. Disponível em http://www.2112.net/ powerwindows/transcripts/19860400canadiancomposer.htm Acesso em 24 mai. 2019. POE, E. A. (2011). A filosofia da composição. Tradução: Léa Viveiros de Castro, 7 Letras, RJ. SAMOYAULT, T. (2018). A intertextualidade. Tradução: Sandra Nitrini. Aderaldo & Rothschild Editores, SP. SCLIAR, M. (2013). Território da Emoção: Crônicas de medicina e saúde. Organização e prefácio de Regina Zilberman. 1. ed., Companhia das Letras, SP. VARELLA, D. (2015). Correr: O exercício, a cidade e o desafio da maratona. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras.
  • 8. Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 50 ANEXO 1 * Disponível em: https://www.letras.mus.br/rush/34602/traducao.html (acesso 24/05/2019) MARATHON It's not how fast you can go The force goes into the flow If you pick up the beat You can forget about the heat More than just survival More than just a flash More than just a dotted line More than just a dash It's a test of ultimate will The heartbreak climb uphill Got to pick up the pace If you want to stay in the race More than just blind ambition More than just simple greed More than just a finish line Must feed this burning need - In the long run... From first to last The peak is never passed Something always fires the light That gets in your eyes One moment's high And glory rolls on by Like a streak of lightening That flashes and fades In the summer sky Your meters may overload You can rest at the side of the road You can miss a stride But nobody gets a free ride More than high performance More than just a spark More than just the bottom line Or a lucky shot in the dark - In the long run... You can do a lot in a lifetime If you don't burn out too fast You can make the most of the distance First you need endurance - First you've got to last... MARATONA* Não é a questão de que velocidade você pode chegar A força tem que fluir Se você pegar a ritmo Você pode esquecer do calor Mais do que apenas sobreviver Mais do que apenas um clarão Mais do que apenas um compromisso Mais do que apenas um ímpeto É um teste de extremo desejo A batida do seu coração ao subir montanha acima Você tem que pegar o passo Se quiser continuar na corrida Mais do que apenas uma ambição cega Mais do que apenas uma simples cobiça Mais do que apenas a linha de chegada Você precisa alimentar esta necessidade ardente No longo percurso De primeiro para último O ponto máximo nunca é ultrapassado Alguma coisa sempre acende a luz Que chega em seus olhos A grandeza de um momento E a glória que chega aos poucos Como um vestígio de raios Que lampeja e enfraquece Nós céus de verão Seu ritmo pode sobrecarregar Mas você pode descansar no acostamento Você pode perder um avanço Mas ninguem consegue uma carona de graça Mais do que uma grande performance Mas do que apenas uma faísca Mais do que objetivar a chegada Ou um tiro no escuro No longo percurso Você pode fazer muito durante a vida Se você não desistir facilmente Você pode fazer o melhor trajeto Mas primeiro você precisa de resistência Primeiro você tem que aguentar
  • 9. Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 51 ANEXO 2 Maratona e resiliência Moacyr Scliar – Zero Hora - [24/05/2008] Estive algumas vezes em Nova York no período em que lá se realizava a famosa e tradicional maratona. Numa dessas vezes, vi, afixado num gigantesco painel, a classificação dos corredores. Eram milhares, mas todos os nomes estavam ali, e também o lugar em que tinham chegado: o primeiro colocado, o segundo, o terceiro - e o último. Sim, havia um último lugar. E isso me impressionou. O que faz um corredor que está em último lugar numa prova, que já não tem mais ninguém atrás de si, esforçar-se para chegar à linha de chegada? Que energia move o maratonista? Há um termo que atualmente se aplica muito a essa e outras situações: resiliência. Em física, resiliência é a propriedade que tem um material de, quando deformado elasticamente, absorver energia, que é liberada quando esse material volta à forma anterior. Do ponto de vista psicológico, resiliência é a capacidade que tem a pessoa de suportar o estresse e superá-lo. Portanto, resiliência não é apenas resistência, esta sendo considerada uma coisa passiva: agüentar o tranco estoicamente é resistência. Resiliência é isso e mais a capacidade de se reestruturar e de crescer emocionalmente como resposta ao desafio e à crise, com aumento inclusive da auto-estima. E auto-estima é coisa importante na maratona, que é uma competição muito peculiar. Claro, existem aqueles que podem ser considerados adversários, os outros corredores. Mas os corredores de longos percursos freqüentemente correm sozinhos, e o fazem de forma intensamente concentrada como a gente pode constatar, observado a fisionomia deles. Quem é o adversário do corredor solitário? É aquela outra pessoa que ele tem dentro de si, e que repete constantemente, numa vozinha debochada, irritante: você não conseguirá. É o estresse, ao qual o maratonista responde com a resiliência. Diz o maratonista inglês Gareth Hopkins que a corrida é uma oportunidade para se crescer como pessoa. É um exagero comparar a vida a uma maratona? Não, não é. Na verdade, é até uma metáfora constantemente usada. Viver é correr (mesmo quando ficamos presos no trânsito). Viver é se estressar. Mas assim como precisamos de resiliência para a maratona, precisamos de resiliência na vida. Que o estresse nos atinja, que nos impregne com uma energia negativa, tóxica, é normal. Mas precisamos aprender a voltar à nossa forma, eliminando de nós os eflúvios negativos. Precisamos prosseguir rumo à nossa meta. Se somos dos primeiros ou dos últimos, não importa. O que importa é chegar lá.
  • 10. Língua, Literatura e Ensino, Vol. XVI, Campinas (SP), Maio/2020 52 ANEXO 3 A maratona e a vida Moacyr Scliar – Zero Hora - [26/05/2007] Meu amigo, o escritor Carlos Stein, é autor de um conto impressionante, escrito há vários anos. Narra a história de um homem que se propõe a atravessar a nado um rio até uma ilha. O desafio é excessivo, o nadador quase sucumbe no meio do caminho, mas finalmente chega lá. E, tendo chegado, descansa um pouco e se atira no rio: vai enfrentar de novo o mesmo desafio. Desafios não faltam em nossa vida e muitas vezes assumem a forma de exercício físico, de prática esportiva. A maratona disso é um clássico e impressionante exemplo. É uma homenagem a Feidípides, o soldado grego que correu de Maratona a Atenas para anunciar a seus conterrâneos a vitória sobre os persas. Ao longo do tempo, Feidípides se constituiu em modelo para atletas sem conta. Alguns se tornaram lendas vivas, como o etíope Abebe Bikila, que corria de pés descalços, e Paul Piplani, um bioquímico que vive no Arizona e que já correu seiscentas maratonas, arrecadando fundos para uma entidade que ajuda doentes neurológicos. No Brasil, Piplani tem vários seguidores: o escritor Alexandru Solomon, por exemplo, regularmente vem de São Paulo para correr a maratona em Porto Alegre. Duas palavras definem o maratonista. A primeira é “resistência”, uma tradução não muito satisfatória para o termo inglês “endurance”. Endurance implica não apenas a capacidade física de fazer exercício por períodos relativamente longos de tempo, como também a disposição emocional para fazê-lo. A outra palavra é “estâmina”, que tem duplo significado: em biologia, designa aquilo que dá sustentação a uma estrutura orgânica, como os ossos de nosso corpo e o lenho das árvores. Metaforicamente, estâmina designa a nossa fibra, a capacidade de suportar agravos e de enfrentar desafios. “Fibra”, aliás, é um excelente termo para corredores, sobretudo os nordestinos e os quenianos: o corpo deles é seco, fibroso. Nada de massas musculares proeminentes, porque eles não estão concorrendo ao título de Mr. América. São músculos modestos, mas confiáveis, que aguentarão a dura prova. Mas não só de músculos (e de ossos e tendões) é feito o maratonista. Os aspectos emocionais também pesam. Em que pensa um maratonista quando corre? Há estudos e recomendações a respeito. Os pensamentos podem ser dissociativos, aqueles que tendem a “distrair” o corredor: um trabalho aconselha contar os carros azuis que a pessoa vê no caminho ou o número de cães. Ou podem ser associativos, focados, por exemplo, no ritmo respiratório (“Cada vez que você expira, tente imaginar a tensão abandonando seu corpo”), ou o maratonista pode dizer a si próprio coisas encorajadoras, positivas. As pesquisas mostram que os maratonistas amadores preferem a dissociação, enquanto os profissionais escolhem a associação. De qualquer modo, a conclusão se impõe: não é só o exercício físico, o lado emocional conta muito, porque, ao fim e ao cabo, trata-se, como em muitos aspectos de nossa existência, de vencer um desafio. A corrida é a vida. Feidípides sabia disso muito bem.