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José Nivaldo Júnior
TUDO PELOS ARES(Amor e cólera em tempos de Lava Jato)
Recife, 2018
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V.
O máscara
de ferro

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tudopelosares
No dia seguinte, antes mesmo de sair da cama, JB consul-
tou no celular o número de Elisa. Ele estava desbloqueado. Não re-
sistiu e passou uma mensagem. Como desconhecia as condições
dela para verificar o celular, recorreu ao genérico criativo. Algo
que dissesse tudo sem comprometer nada. Enviou uma só palavra:
Maravilha. E aguardou a resposta. Essa veio, rápido, de uma forma
sintética e objetiva: Hoje, mesma hora, mesmo local.

Impactou. E o remeteu ao imenso limbo da dúvida. É que ele
tinha viagem marcada naquela tarde. Iria ao Rio de Janeiro. Um
cliente, não sabia ainda qual, precisava dos seus préstimos. O cha-
mado era mais que eloquente. Algumas empresas às quais prestava
serviços estavam metidas até o pescoço em alguma ou algumas des-
sas Operações de nomes eruditos e exóticos, que tinham se tornado
rotina no panorama político e empresarial do País. Ou tinha caído
nas mãos da chamada República dos Investigadores, um país den-
tro do País, centro das atividades da Polícia, do Ministério Público e
de alguns juízes federais de primeira instância, que estavam intro-
duzindo uma nova dinâmica ao processo judiciário do Brasil. 

Muitas pessoas, de forma visível e ostensiva, aplaudiam in-
condicionalmente aquela estratégia. Consideravam que investi-
gadores, procuradores e juízes estavam combatendo a corrupção,
destruindo conluios empresariais danosos, colocando políticos e
empresários nas cadeias, anteriormente reservadas a pretos, po-
bres e prostitutas. Os únicos presidiários ricos, até então, eram
os milionários líderes do tráfico de drogas. A tal Operação surgiu
quase do nada como verdadeira Operação Mãos Limpas verde-
-amarela. Como sua inspiração original, na versão italiana, haveria
de restaurar um idealizado panorama de honestidade no trato da
coisa pública, acreditavam os seus defensores.
Outros pensam diferentemente, mas se expressavam com
mais cautela para não afrontar a classe média engajada e setores
da grande mídia. São muitos os que cultivam restrições a tais práti-
cas. Mas são bem menos barulhentos. Para estes, não se fazia nessa
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JoséNivaldoJunior
República mais que justiçamento, nos moldes da justiça aplicada
com as próprias mãos nos filmes de faroeste. 

O principal argumento era que tais práticas atropelavam leis
e procedimentos, desrespeitavam a Constituição, a jurisprudên-
cia e o bom senso. E, além disso, alimentavam uma crise política
artificial, inibindo o protagonismo do Brasil no denominado con-
certo das nações. Desperdiçando, dessa forma, oportunidades de
ouro na disputa por espaços no cenário internacional. Pior ainda.
Desmontavam um modelo empresarial competitivo, construído
com muitas dificuldades, que garantira a formatação de grandes
corporações verde-amarelas, capazes de brigar de igual para igual
em vários setores da economia globalizada. 

Para quem pensava nessa linha, a denominada Operação cons-
tituía, com suas ramificações, um instrumento do imperialismo. Os
objetivos eram desmoralizar e fragilizar os políticos para, com isso,
facilitar o retrocesso do Brasil ao seu antigo papel, definido desde
a era colonial. Ou seja, fornecer ao mercado internacional matérias
primas e produtos agropecuários. E, em troca, acolher montadoras
de diversos setores destinadas a fabricar produtos com tecnologia e
componentes essenciais importados. Que vinham para cá explorar
nossa mão de obra barata e se locupletar de um mercado pujante, de
dimensões continentais. A democracia é ótima nesse aspecto. Cada
qual pensa como quer e se expressa livremente, sem risco de ser pu-
nido por isso, como acontece nas ditaduras.

Os opositores da Operação atribuíam também à iniciativa a
inconfessável intenção de reduzir o Brasil à mesma categoria su-
balterna de outros dóceis países do Terceiro Mundo. Em nome de
uma causa louvável, estavam condenando o País a mero importa-
dor de soluções científicas e tecnologia de ponta. 
Queiram ou não,
argumentavam, os políticos são os guardiões da pátria. Sua desmo-
ralização quebra a capacidade de resistência do País.

Tais teses têm sido discutidas com ardor nas redes sociais,
dividindo famílias, fazendo amigos de longas datas ficarem trom-
budos uns com os outros. Até o momento, a intolerância não dá
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tudopelosares
sinal de que entrou em baixa. A cada momento surge um fato novo
que reacende tudo e a troca de acusações ascende com toda a força.
Insultos tomam o lugar de argumentos, acusações são disparadas
para todos os lados. 
JB proclamava-se apolítico, procurava saber de tudo, mas não
ter opinião sobre nada. Era um ser contraditório, como todo mun-
do. Autoproclamando-se individualista, queria resolver primeiro
seus problemas. Por outro lado, cultivava uma brasilidade arraiga-
da. Melhor dizendo: uma exaltada pernambucanidade. O meu esta-
do é a minha pátria, afirmava. Nessa linha, jamais admitira morar
no Sul ou em Brasília, onde estavam centralizados os seus interes-
ses. Muito menos no exterior. Preferia viver em verdadeiro zigue-
-zague aéreo. Dizia que seu corpo era formado por cabeça, tronco,
membros e aviões.

Os filhos conheciam o mundo, estudaram fora, eram livres
para decidir o destino de cada qual. No entanto, todo o estímulo fi-
nanceiro e ideológico, era direcionado para viverem no Brasil. Para
ele, repetindo o pintor Cícero Dias, o mundo começava no Recife.
O resto era lugar para trabalhar e ganhar dinheiro. Trabalho não
tem fronteira, dinheiro não se expressa em língua nenhuma. Em
qualquer lugar encontra boa hospedagem.

Falando em trabalho e dinheiro, sabia que a convocação que
lhe fora feita, usando códigos preestabelecidos e fora do alcance
de rastreadores oficiais, significava assunto importante e urgente.
Café da manhã em algum lugar do Rio de Janeiro, saberia o local
pouco antes da hora. Precauções próprias do Máscara de Ferro,
personagem das sombras a serviço de governos, grupos políticos,
grandes corporações. Tão discreto e eficiente que, apesar de ter
acobertado algumas das maiores falcatruas de todos os tempos, ja-
mais fora mencionado em nenhuma delação ou sofrido investiga-
ção de qualquer natureza. 

De um compromisso com ele, ninguém tinha como escapar. A
não ser que quisesse ser eliminado do seu círculo e, em consequên-
cia, provavelmente, da própria vida. O Máscara era assim chamado
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JoséNivaldoJunior
porque poucos, talvez ninguém, conhecesse sua verdadeira identida-
de. Nada de sua vida privada era público e notório. Era um ser envol-
to em mistérios e sabia administrar bem essas versões fantasiosas.

Rezava a lenda que nunca dormia duas noites no mesmo local,
não possuía imóveis, contas bancárias, cartões de crédito ou débi-
to, sequer automóveis. Andava de táxi, não usava ônibus nem avião,
só frequentava ambientes controlados. Mudava de celular quantas
vezes fosse necessário.

Quando queriam lhe convocar, usavam códigos nas redes so-
ciais. A partir daí, ele ditava as regras para os encontros. Em pouco
tempo, vindo ninguém sabia de onde, quem o convocava recebia
um celular irrastreável e através dele combinavam o encontro. Cara
a cara, sem intermediários, sem detalhes, tudo acertado de uma
vez, pagamento após a execução, em moeda estrangeira, cada vez
de forma diferente. 

Encontros geralmente realizados em bares ou restaurantes
em horário de pouco movimento, a água já se encontrava sobre a
mesa, e no final, terminada a conversa, alguém servia um cafezi-
nho. Todos sem celulares, sem canetas nos bolsos, usando camisas
de mangas curtas, havia sempre uma pessoa para recolher os pa-
letós e discretamente passar um detector de metais ou emissores
de ondas magnéticas. Essa rotina o Máscara usava desde sempre,
muito antes de alguém imaginar que um grande empresário seria
condenado a décadas de prisão ou que um presidente ou ex-presi-
dente da República pudesse ser investigado como qualquer meque-
trefe suspeito de uma falcatrua banal. 

Esse ritual de cuidados era uma das razões do seu sucesso. A
outra era a eficiência. Não havia registro de fracasso ou vazamento.
Era o encarregado pelas principais empreiteiras, inclusive algumas
que já tinham malfeitos identificados e estavam sob rigorosa inves-
tigação, para executar missões secretas e delicadas. Para isso, ele
contava com o que chamava de círculo. Um seleto e testado grupo
de operadores, capazes de inimagináveis proezas. 

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tudopelosares
Compunham o círculo do Máscara pessoas acima de qualquer
suspeita, livres de qualquer investigação, aptos para executar ta-
refas difíceis, importantes e frequentemente ilegais. Com uma
característica em comum: todos tinham uma atividade legal, uma
vida socialmente estável, eram pessoas normais circulando na so-
ciedade. Esses operadores eram os olhos, ouvidos e principalmente
as mãos do Máscara. Suprimiam todos os vestígios e executavam
tarefas que, uma vez concluídas, não deixavam rastros sobre os
autores ou mandantes. Podiam pensar, imaginar, especular. Isso é
inevitável. Porém provar, que é bom, jamais.

JB era um dos principais executores da malha do Máscara de
Ferro, talvez o mais importante deles. Por isso, nunca se envolvia em
operações, digamos, banais dos seus clientes, como transportar di-
nheiro, pagar subornos e outras atividades triviais com esse perfil.

O Máscara e o próprio JB consideravam tais práticas rotinei-
ras estruturadas em nível de amadorismo tão gritante que jamais
poderiam dar certo. Só a falsa sensação de impunidade, combina-
da com a prepotência e arrogância dos poderosos poderia justifi-
car tamanha imprudência. Em algumas poucas ocasiões nas quais
o papo se estendeu um pouco, o Máscara profetizou: Isso tudo que
nossos amigos estão fazendo vai dar em merda. Nós vamos ser convocados
para salvar o que puder ser salvo no resgate do naufrágio. Chegará a vez do
nosso trabalho ser reconhecido e bem pago. Tem paciência, garoto, nossa
hora ainda vai acontecer.
JB percebera o perigo de vulgarizar as patifarias a tempo. A
operação na África foi a última em que metera a mão na lama, como
se diz. Mesmo assim, discretamente, sem sair da linha, atuando em
solo estrangeiro. A rigor, nem cometeu crimes. Mesmo assim, apro-
veitou o sucesso para mudar de patamar. A partir daí, dedicou-se a
fazer o chamado lobby limpo e eficiente, que garantia o seu trânsito
junto a grandes empresas públicas e privadas e a gente importante
dos três poderes. Era jeitoso, teve sucesso, conseguiu articular ne-
gócios legítimos, fazia o trabalho em alto nível de eficiência, encer-
rava a sua participação. E o que é mais importante: garantia uma
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JoséNivaldoJunior
renda declarada que justificava alguns investimentos e o seu alto
padrão de vida.

Mas tudo isso era a parte visível do iceberg. A sua expertise,
a sua grande especialidade era conhecida parcialmente por uns
poucos companheiros de longas datas e, na totalidade, apenas pelo
Máscara. Era a já mencionada capacidade de limpar sujeiras sem
deixar rastros. 

Existiam, como foi dito, dois JB: o lobista bem-sucedido e o
criminoso muito bem remunerado. Se a sua face oculta tivesse
sido mais acionada lá atrás, diversas investigações frutíferas te-
riam dado em nada, muita gente teria evitado as delegacias e as
prisões, empresas teriam salvo bilhões. Maldita autossuficiência,
maldita cegueira. JB odiava as expressões eu bem que disse e eu avisei.
Soavam para ele como um atestado de sua própria incapacidade de
convencer pela qualidade dos serviços prestados.

As coisas, porém, acontecem da forma e do jeito que têm que
acontecer. Foi necessária uma hecatombe para que os grandes
empresários finalmente concluíssem que trabalhos como os que
o Máscara intermediava e ele fazia acontecer valiam cada dólar
desembolsado. Mas, para muitos, era tarde. Agora, com delações
premiadas comprometendo tudo e todos, recorriam ao Máscara
quando algo muito valioso estava em jogo. Fora disso, só as hon-
rosas exceções de praxe. Para cada trabalho, o agenciador escolhia
entre o seu seleto núcleo de operadores aquele com o perfil mais
apropriado para a missão.

Esse era o dilema de JB naquele dia. Como conciliar o compro-
misso profissional e o afetivo? O primeiro não comportava negocia-
ções, sequer tinha como retornar para contrapropor outro horário.
Com Elisa podia ter uma chance de acomodar as coisas. Tentou o
diálogo, mas o celular já estava novamente bloqueado. Ficou iner-
te. A experiência não funciona quando se trata de assuntos mais
profundos do coração. E não existe mente que se mantenha fria e
isenta sendo dominada pela turbulência da paixão.

JB cometeu a infantilidade de ligar para o escritório de Elisa,
na esperança de ser atendido dessa vez. Inútil. A secretária repetiu
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o ritual anterior. Registrasse o assunto e aguardasse retorno. Teve
que se contentar. Passou horas contemplando a mensagem seca.
Mesma hora, mesmo lugar. Conformou-se.

Correu o risco de violar as suas regras na relação com o
Máscara, atropelar seus métodos. Não procedeu com as precauções
de costume. Reservou um voo na madrugada, prática que evitava.
Voar durante o dia é bem menos cansativo e permitia chegar cedo
para repousar bastante e estar em forma e descansado nos encon-
tros profissionais, principalmente aqueles que exigiam maior ener-
gia e concentração. Além disso, tinha como norma de segurança
nunca depender de uma única opção de voo. Na sua atividade das
sombras, faltar a encontros agendados com 24 horas de antecedên-
cia era imperdoável. Significavam que alguém morrera ou no míni-
mo encontrava-se na UTI. Fora isso, nada justificava.

Para se garantir, deixou um jatinho de prontidão, que seria
desmobilizado quando já estivesse na aeronave, prestes a decolar.
E assim tentou um acordo íntimo entre razão e emoção. 
Esperou
tenso, o dia inteiro, o momento do encontro com Elisa. É lugar co-
mum, mas tem que ser dito: quanto mais a gente espera com pres-
sa, mais o tempo demora a passar. 

JB chegou cedo ao shopping. Cortou o cabelo, fez massagem
nos pés, massagem na cadeira, comprou cuecas, um par de sapatos,
algumas camisas. Chegou ao local do encontro pontualmente. 
A
diferença é que, dessa vez, ela estava prevenida. Posicionou-se de
modo a que a repetição do beijo fosse impossível. Senta aí, ordenou
apontando a cadeira à sua frente, do outro lado da mesa. Obedeceu.
Cappuccino? Aceito. Moça, por gentileza, dois cappuccinos, água com gás.

Ficaram se contemplando sem ternura, sem desprezo, ape-
nas um olhar tenso, desprovido de emoção. Tomaram a bebida, as
mesas vizinhas esvaziaram, ela começou um discurso ensaiado,
em tom absolutamente neutro: Querido, a primeira vez aconteceu por
acontecer, devia ter ficado por ali, eu bem que tentei, teria sido melhor para
nós dois. E prosseguiu: Ontem o senhor me armou uma emboscada, teve
sucesso. Me surpreendeu e desnudou minha alma, coisa que eu não gosto,
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52.
JoséNivaldoJunior
mas novamente aconteceu. Eu não consigo mais manter minha aparente
indiferença porque você sabe que estou tão envolvida quanto o senhor. A
mistura de tratamentos demonstrava o nervosismo, apenas super-
ficialmente sob controle.

JB ensaiou dizer alguma coisa, ela interrompeu. Espere. Deixe
eu terminar, depois você fala o quanto quiser. E prosseguiu: Querido, es-
tou separada, mas sou uma mulher casada e conceituada. Não sou santa,
mas nunca me meti em aventuras fúteis. Para mim, qualquer pessoa pode
transar com qualquer pessoa uma vez, depende das circunstâncias, como
aconteceu conosco.


Quem transa uma vez, transa duas, até para confirmar caso tenha sido
bom ou dar outra chance ao prazer, se ocorreu um fracasso. Confirmamos
isso ontem. Se também foi bom, na verdade ótimo, naquele desconforto, sem
álcool, só com gosto de café na boca, tem tudo para ser bom por muito tempo.
A questão é a próxima vez. A terceira vez muda a relação de categoria, amore.
Depois de três trepadas, passa a ser caso. E caso é sempre complicado.

Parou um pouco, bebeu um gole de água e repetiu: Caso pra
mim é complicado. Meu marido, a quem já lhe disse que ainda amo, e mui-
to, não é uma pessoa fácil. Não preciso falar, você conhece a fama. Ainda
não entendi as razões da separação, tenho quase certeza de que não é outra
mulher, apesar dele andar se exibindo com putas de luxo no Recife, no Rio,
em São Paulo, em Brasília. 

E prosseguiu: Intuição de mulher não se engana, aquilo é encena-
ção, talvez para me causar ciúme, ainda não alcancei os verdadeiros moti-
vos desse teatro. Eu também não sou uma pessoa fácil. Muitos me acham
completamente louca, não estou nem aí. Pessoas normais trabalham em
bancos ou fazem concurso público. Eu sou diferente, gosto de ser assim.

E foi adiante sem dar chance ao outro de argumentar nada.
Confesso que você me atraiu. Ou melhor, ele me atraiu através de
você. Não se engane. Quando eu te beijo, é ele que estou beijando. Quando
te como, é ele que estou comendo. E não tenho ideia do quanto vai durar isso
e, quando acabar, o que vai sobrar de nós dois. Porém ontem decidi que não
vou instigar nem fechar a porta. Deixa rolar. Só tenho uma certeza: não vou
ter um caso banal com você. 

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Ao ouvir o advérbio, JB respirou aliviado. Lembrou de uma
ladainha dos seus tempos de estudante, ainda no interior: mas,
porém, contudo, todavia. Palavras mágicas que invertem o rumo
da conversa. Bem se diz que o advérbio é a perdição dos justos e a
salvação dos desenganados. Por isso, seu olhar recuperou o brilho,
a vida voltou a sorrir. Estava tudo bem.

Já nem prestou muita atenção na conversa de Elisa, que pros-
seguiaenfática:Avidaémuitocurta,intensaepreciosaparacasosbanais.
Eu não me perdoaria. Não justifica os riscos. Vamos dar tempo ao tempo.
Vou aproveitar o feriadão do dia 8 de dezembro (Festa da Conceição, pa-
droeira informal do Recife) para trabalhar em São Paulo. Me procure
lá, se quiser, o celular estará desbloqueado para você. Pode passar men-
sagem ou ligar direto. Lá, a gente conversa, mas nem pense em trepar. A
chance é zero. 

A chance zero trouxe JB de volta à conversa. Se não vai rolar
amor, para que encontrar? Ela prosseguiu: Nossa próxima trepada, se
houver, será um marco em nossas vidas. Algo inédito, apoteótico, que real-
mente valha a pena. É isso. Hoje quem paga sou eu, pode ir. Agora mesmo,
sem delongas. Vá como o homem que você é. Sem vacilar, sem olhar para
trás. Até São Paulo, se você quiser e puder. Lá combinaremos tudo, ponho-
-lhe a par dos meus planos, se você topar, eu garanto que vou gostar.

Jogou um beijinho com a mão, os olhares se cruzavam, tinham
recuperado a ternura, a paixão. JB devolveu o beijinho, levantou,
saiu, apressou o passo, seguiu firme, não olhou para trás. Já que era
assim, vamos tentar ajeitar o resto. Sem demora rumou para o ae-
roporto.
O voo das 8 estava atrasado, conseguiu vaga, foi dormir no
Rio de Janeiro. Acordou no horário previsto, nenhuma mensagem
no celular. Ligou para a recepção. Sim, um envelope fora entregue
para ele quase naquele instante.

Logo o mensageiro bateu na porta e, em poucos instantes JB
ficou sabendo a hora exata e o local da conversa. Elisa era, naquele
instante, uma lembrança envolvente, um enlevo bom. O encontro
com o Máscara de Ferro concentrava agora todas as suas atenções.
Naquele momento, novamente a razão recuperava o seu transitório
controle sobre a lembrança e a saudade.

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VI.
Missão impossível 

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tudopelosares
O Máscara recebera na véspera uma missão delicadíssi-
ma, uma das mais complexas da sua carreira, marcada pela dificul-
dade em cada ação. Nunca tivera tarefa fácil, mas aquela carregava
riscos mortais. Falhar era impensável.

Certa empreiteira, uma das maiores do mercado, fora alcan-
çada em cheio pela Operação. Sem saída aparente, optara, tempos
atrás, por fazer uma ruidosa delação premiada. Flagrada em deze-
nas de falcatruas, no Brasil e no exterior, não tinha como escapar
de pesadas perdas financeiras, e quase uma centena de seus prin-
cipais executivos estava destinada a mofar nos cárceres infectos
do País. Decidiram, pois, agir de acordo com a antiga filosofia de
entregar anéis para tentar preservar os dedos.

Entregar anéis, bem entendido, o que é muito diverso de en-
tregar os anéis. O artigo no plural faz toda a diferença. Entregaram
anéis, até joias da coroa, pagaram multas altíssimas, negociaram
acordos de leniência corporativa, levantaram recursos vendendo
empresas sólidas e limpas, conseguiram uma sobrevida no merca-
do. Porém, guardaram alguns anéis valiosos.

Em qualquer entendimento complexo, o maior risco de falha
reside no fator humano. Pessoas são, por natureza, imponderáveis
e incontroláveis. Cada qual reage de forma diferente diante do pe-
rigo, a desmoralização, a exposição na grande mídia. O risco maior
decorre da sogra e das filhas, repetia o presidente do Conselho,
fundador e líder do poderoso conglomerado. Sogras, filhas, espo-
sa, parentes, amigos próximos são capazes de exercer uma grande
pressão sobre um acusado, visto que também pagam um alto custo
pelos crimes dos outros, sem ter culpa no cartório.

Assim, quando ficou decidido que diretores importantes, até fa-
miliares próximos, seriam presos como bois de piranha, para aplacar
a sanha da mídia e arrefecer os ímpetos justiceiros da sociedade civil
e das instituições punitivas, foi preciso uma negociação muito dura
e difícil, para ninguém ficar atirando a esmo. Tal encaminhamento
deixou marcas profundas, fez brotar mágoas incontornáveis. Porém,
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56.
JoséNivaldoJunior
no geral, ficou tudo acertado. Uma meia dúzia iria pagar o pato pelo
bem de todos e pela sobrevivência do grupo.

Restavam dezenas de executivos que, conforme combinado
com procuradores e juízes, não seriam presos, mas prestariam
uma desmoralizante delação premiada e ficariam sujeitos a humi-
lhantes penas alternativas. Por um bom tempo seriam submetidos
a tarefas impensáveis para eles, como, por exemplo, limpar durante
anos latrinas de escolas ou recolher o lixo de equipamentos públi-
cos. Além de sofrerem diversas restrições no sagrado direito de ir
e vir, como recolhimento em casa à noite e nos finais de semana. 

Mesmo em situação incomparável em relação a qualquer pre-
sídio, o preço era alto. Estariam condenados ao isolamento social,
à perda do respeito da família e dos amigos. Não podiam frequen-
tar lugares públicos sob pena de sofrer agressões ou hostilidades.
Seriam vistos como bandidos, proscritos enquanto vivessem.

Para que tudo isso funcionasse, foi firmado, primeiro indivi-
dualmente, depois coletivamente, um verdadeiro pacto de sangue,
um compromisso de vida ou morte. 

Combinaram direitinho o que cada qual delataria aos investi-
gadores. Todos os diretores designados para a delação receberam
um roteiro, como se fossem atores de novela. Todos decoraram o
seu papel e tiveram que fazer prova oral com sabatina, perante uma
soturna banca de advogados com cara de poucos amigos. Se der-
rapavam em algum item, caso não conseguissem responder algo a
contento, eram dispensados e se apresentavam na sede da empresa
48 horas depois para novamente serem submetidos ao exame.

Essa encenação tinha sua razão de ser. Apertava parafusos e
conduzia ameaças embutidas. Já ficara acertada a remuneração
que cada diretor receberia nos próximos 10 anos, montante sufi-
ciente para que todos se aposentassem confortavelmente, a desmo-
ralização pessoal seria bem aquinhoada. Dinheiro não significaria
mais problema na vida de ninguém do grupo. O único risco era al-
guém não cumprir o script.

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tudopelosares
Desse modo, quando se despediam, aprovados no teste e ap-
tos para se apresentarem às autoridades para sacramentar a de-
lação, recebiam um dossiê de sua própria vida. Relato completo.
Esposa, filhos, endereços, hábitos, parentes, amantes, falcatruas
não detectadas, uma radiografia completa. Não era preciso dizer
nada. A papelada era mais do que eloquente. Mesmo assim, vinha
a advertência explícita. Com palavras grosseiras, o portador, fun-
cionário das antigas, parceiro do poderoso chefão desde o início
controvertido e nebuloso do grupo, selava a entrega do dossiê. A
ameaça ficava na conta do próprio emissário, conhecido pelo su-
gestivo apelido de Papel de Embrulhar Prego. 

O motivo que levava JB àquela conversa com o Máscara gi-
rava exatamente em torno de anéis não entregues naquele pro-
cesso. Registros de segredos capazes de jogar por terra todas as
delações, desfazer os acordos e destruir definitivamente o gru-
po jaziam armazenados em algum lugar secreto, conhecido por
apenas duas pessoas: o presidente do Conselho e o seu filho, líder
executivo do conglomerado.

Era realmente um lugar secreto, um armazém em nome de
um morto, sem nada que o ligasse formalmente ao grupo. Para lá
foram enviados às pressas documentos que não dera tempo de es-
canear e cerca de 50 computadores, sendo que um deles, apenas
um, armazenava 100% off-line as informações fundamentais para
o arriscado jogo de sobrevivência do conglomerado.

Tudo de estratégico encontrava-se ali. Nenhuma informa-
ção estava armazenada nas nuvens, nada transitado na internet.
O Máscara fora encarregado do transporte e da montagem de
um sistema de vigilância executado por um seleto grupo de ho-
mens de confiança. Exclusão total de equipamentos eletrônicos.
Considerava mais eficiente e seguro o uso do velho e bom vigia, ar-
mado com um revólver calibre 38 na cintura e rifle Whinchester nas
mãos, aqueles dos filmes de faroeste.

Tais dados, se viessem a ser divulgados com estardalhaço,
arrastariam para o mar de lama atores importantes do mercado
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58.
JoséNivaldoJunior
empresarial e financeiro, até então imunes ao furacão das inves-
tigações. Essa preservação era fundamental para as empresas que
estavam na linha de tiro. Baleadas, aguentavam o tranco, dirigindo
o foco de suas delações para figurinhas carimbadas dos mundos
empresarial e político, gente que não tinha mais como escapar.
Outros, no entanto, tão ou mais comprometidos do que os que fo-
ram apanhados, continuavam operando nos seus setores como se
nada tivesse acontecido. Sem pagar um pai nosso de penitência,
pelo contrário, usufruindo de benesses antigas e novas, ganhando
espaço e dinheiro como nunca.

Dizem alguns que, uma vez desmoralizado, o melhor para
um empresário é que outros da mesma posição se lambuzem tam-
bém, vira tudo farinha do mesmo saco, o sujo não pode falar do mal
lavado. Não era essa a filosofia dos clientes do Máscara de Ferro.
Quanto menos gente envolvida, melhor. Quanto mais pessoas im-
portantes devendo favor, sabendo que poderiam ter sido objeto de
troca nos inquéritos e processos, mas foram preservadas, mais van-
tagens podiam ser obtidas. 

A determinação era entregar quem já estava ou seria inevita-
velmente apanhado e proteger quem ainda tinha chance de esca-
par. Era uma estratégia complexa, uma linha tênue. Todas as pro-
vas que não caíram nas malhas da polícia deveriam ser destruídas.
Deveriam. Mas não foram. E, de algum modo isso foi em algum
momento insinuado para, digamos assim, as pessoas certas.

Saber que só não estava queimando no fogo do Inferno porque
alguém foi discreto em momentos amargos, que alguns mostra-
ram-se capazes de resistir às pressões e tentações para salvar a pele
alheia, representava um valor expressivo no mercado. Ter consciên-
cia de que, dependendo de certas indiscrições, ainda está sujeito a
também entrar no turbilhão, desperta um inimaginável espírito de
solidariedade. 
Para isso, era preciso guardar provas que pudessem
comprometer terceiros poderosos. O método constituía uma forma
sutil de chantagem, um modo de ter parceiros poderosos na mão.
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tudopelosares
Se a estratégia desse certo, o grupo sobreviveria, quem sabe, mais
adiante, recuperaria o seu protagonismo.

Não existe plano perfeito, claro. O furo dessa vez veio de onde
ninguém podia esperar. O filho, verdadeiro príncipe regente de um
império talhado para ser hereditário, foi entregue à prisão como
um cordeiro imolado. Estoicamente, pensou que se sacrificava pela
empresa. Mas, com o passar dos meses, foi perdendo a paciência.
Achou muito ruim os desconfortos do cárcere, que se tornavam
cada vez menos suportáveis. Sentiu muito e reclamou, sem ser ou-
vido, do abandono a que estava relegado.

Gente que beijava sua mão todos os dias, que excedia em baju-
lação, sequer se dava ao trabalho de enviar chocolates, visita, então,
nem pensar. Faltaram atitudes explícitas de solidariedade. Pelo acor-
do original, deveria passar cinco anos preso em regime fechado. Era
muito. Desse modo, resolveu por conta própria tentar abreviar esse
prazo. Ainda mais quando soube, através da imprensa, que o cunha-
do, marido da irmã mais velha, fora designado para o seu lugar.

Prisãoatéfuncionaparaevitarfugas,maséinoperantefrenteà
invasão de fofocas. As informações cavilosas se infiltravam com fa-
cilidade entre as grades. Versões sinuosas sobre o que acontecia no
coração do conglomerado o deixavam furioso. Na verdade, sua ex-
pectativa era cumprir a pena heroicamente e voltar ao comando do
grupo para liderar a recuperação como se fora um Nelson Mandela
empresarial. Os anos de cárcere seriam sua maior credencial.

Ao saber que o novo chefe, em pouco tempo, mudou completa-
mente o seu modo de administrar, fazendo críticas abertas ao mo-
delo anterior, urrou literalmente de raiva. Além disso, o cunhado
demitiu sumariamente todas as pessoas da sua confiança, cortou
regalias de sua família, como carros e motoristas. A esposa, pouco
habituada a essas providências, teve que comprar automóveis, con-
tratar serviçais, ninguém apareceu para ajudar.

O pingo d’água foi o cunhado ter deixado de depositar o seu
pró-labore, afinal preso não trabalha, e quem não trabalha não ga-
nha, dizia pelos gabinetes. Usava o termo da moda, compliance, para
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JoséNivaldoJunior
justificar suas atitudes. Novos tempos, novas práticas, os erros do
passado são para serem corrigidos e esquecidos. Ele mesmo não
tinha compromisso com os equívocos de ninguém. 

O príncipe deposto engoliu o elefante da prisão, mas engas-
gou nos mosquitos das mesquinharias. Com os bens bloqueados, o
dinheiro começou a faltar em casa. Tentou estabelecer um contato
com o pai, recebeu respostas vagas. Solicitou uma visita, nada feito.
Mandou um recado áspero para o cunhado, obteve como resposta
o silêncio. Foi demais para ele. Sentindo-se traído e abandonado,
resolveu chutar o pau da barraca. 

Aceitara o cárcere, as privações, a perda do conceito. Porém
acreditava que, pelo menos no âmbito do seu grupo e do merca-
do, teria direito a futura anistia ampla, geral e irrestrita. Percebeu
que enganara a si próprio. Não existia caminho de volta. Ele estava
excluído do jogo para sempre. Além de constatar tudo isso, encon-
trava-se adicionalmente revoltado: o acordo não incluía ser espezi-
nhado, degradado, perseguido por sua própria gente. O seu substi-
tuto deveria administrar segundo sua filosofia, apenas guardando
o lugar para o retorno triunfante. Entretanto, na prática, aplicou-
-lhe um golpe. Ao invés de preservado, foi banido. Sacrificou-se por
nada. Constatando tudo isso, sentiu-se desobrigado de qualquer
compromisso. Na próxima audiência, reabriu negociações em tor-
no da sua delação. Ainda tinha muito para contar.
Já que estava por conta própria, atuou de acordo com o seu
perfil: foi direto, claro e duro. Queria ir para casa imediatamente,
alcançaria liberdade integral em mais três anos. Teria liberado par-
te do seu patrimônio pessoal para viver sem depender de ninguém.
Em troca, entregaria esquemas fraudulentos de financiamentos
públicos e privados, beneficiando dezenas de importantes empre-
sas, comprometendo os principais nomes do mercado financeiro,
além de envolver CEOs e centenas de altos executivos. 

Indicou, como seu grande trunfo, o local onde encontravam-
-se armazenadas as provas, capazes de transformar tudo o que
ocorrera até então em mero aquecimento para um grande jogo.
Os
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tudopelosares
termos da negociação e as informações prestadas pelo herdeiro va-
zaram em detalhes. O cliente do Máscara, no caso o pai do dela-
tor, tinha gente lá dentro acompanhando tudo. Ficou sabendo que
o local das provas estava identificado e já sob vigilância. A polícia
aguardava apenas que o juiz, designado para o caso, voltasse dos
Estados Unidos, onde era aclamado como estrela em evento jurí-
dico internacional, para ter em mãos a ordem de busca e realizar a
valiosa apreensão.

O Máscara contou a história resumidamente, apenas o sufi-
ciente para JB entender a urgência, a importância e as dificuldades
da missão. Retirar o material sob as barbas da Polícia Federal cons-
tituía realmente missão impossível e acarretaria novos riscos que
o cliente não estava disposto a correr. Era preciso destruir tudo e,
paralelamente, salvar o conteúdo do computador que armazenava
as informações fundamentais. Ainda por cima deixando preser-
vados, no local, registro de determinados documentos capazes de
comprovar que o rapaz falava a verdade na sua delação. 

Isso porque, por mais frio que um homem possa ser, pai é pai.
O cliente não queria ver desmoronar todo o trabalho realizado e
implodir o grupo, mas também não pretendia frustrar a nova nego-
ciação do filho. Pensou que, se estivesse no lugar dele, talvez agisse
da mesma forma. Então a tarefa do Máscara era duplamente de-
licada: salvar o grupo e manter os termos da delação ampliada do
filho. Ou seja, era preciso destruir as provas de forma tal que não
pudesse ser questionado: o príncipe cumprira sua parte no acordo.
Se a justiça e a polícia não se mostraram confiáveis, ágeis e eficien-
tes para captar tudo, problema deles. O herdeiro teria argumentos
para preservar as vantagens pretendidas. A ideia para conseguir
essa proeza veio do próprio pai. Foi o início de um longo e doloroso
processo de reaproximação.
Nos últimos meses, um dos parceiros de negócios, da área do
beneficiamento de frangos, não estava cumprindo compromissos
assumidos, por pura e simples má-fé. Aproveitava a fragilidade
do momento para passar a perna no grupo. Tal comportamento
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JoséNivaldoJunior
vinha a calhar para os seus propósitos. Os empresários estavam
citados na delação ampliada do filho, como beneficiários de uma
operação de crédito cabeluda para financiar exportações jamais
realizadas efetivamente.
O chefe tivera acesso recentemente a documentos que tam-
bém comprometiam a turma em outras operações fraudulentas.
Adicionalmente, andaram transgredindo práticas e normas do
mercado internacional. Colocou as informações em um pen drive e
mandou que aquele arquivo fosse preservado para a polícia. Como
fazer isso acontecer era parte da missão do Máscara. Se desse cer-
to, ajudava o filho, punia os caloteiros e ainda mandava um recado
duro para quem pensasse em lhe apunhalar pelas costas.
O personagem entregou o dispositivo e forneceu a JB referên-
cias, fotos da construção e dos arredores, o segredo do cadeado da
porta lateral, o adesivo que diferenciava o computador que conti-
nha as informações. Para facilitar sua missão, o prédio já estava
sem vigilância desde que a polícia iniciou a campana.  Entregou
também uma mala de mão contendo dinheiro e despediu-se com
um tom inédito de carinho: Vá lá, cara, não há um minuto a perder.

O depósito objeto da missão ficava na área rural do estado,
a cerca de duas horas de viagem. Porém não saiu imediatamente
para o lugar. O estilo define o homem. E o dele incluía primeiro
absorver as informações, formular um plano e só então se movi-
mentar. Em pouco mais de duas horas, não apenas sabia o que
fazer, como já tinha providenciado o básico necessário para o seu
plano. O retorno do juiz estava programado para o dia seguinte,
teria o resto do dia e a noite para agir. Parecia quase nada, mas
para ele era o bastante.

O que aparenta ser difícil, ou mesmo impossível, fora do al-
cance e do raio da imaginação do leigo, para aqueles que conhe-
cem o caminho das pedras é muitas vezes até fácil. Como sempre
procurava fazer, JB se cercou de precauções por todos os lados.
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tudopelosares
Constituía parte do seu estilo utilizar peças recrutadas ao acaso,
sem ligações entre si. Pessoas que topassem qualquer parada e es-
tivessem dispostas a desaparecer por um tempo ou até se mudar de
vez em troca de um bom dinheiro. Tinha um olho privilegiado para
identificar esses tipos. Nas negociações, usava capacete e roupa de
motoqueiro, se necessário alguns adereços de disfarce. Difícil ser
posteriormente identificado. Se algum amigo ou conhecido fosse
chamado a depor sobre ele, seria capaz de jurar que sequer tolerava
andar de bicicleta, imagine usar moto.

Assim funcionava o lado oculto de JB. Nas atividades obscuras
mudava o modo de vestir, de andar, utilizava gírias e expressões
que não faziam parte do seu vocabulário. Comia pratos populares
e só bebia refrigerante, coisa que nunca fazia nos restaurantes e
bares que frequentava habitualmente. Era outro ser, sem conexão
com ele mesmo. Uma de suas qualidades era saber onde encontrar
as coisas certas para o plano ideal. Algo simples veio à sua mente:
explosões em fábricas clandestinas de fogos geram notícias impac-
tantes, mas logo somem do noticiário. Nunca, jamais, em tempo
algum, qualquer jornalista se deu ao trabalho de investigar escritu-
ras, nomes de proprietários, fornecedores, clientes e histórico dos
funcionários de algum desses estabelecimentos quando iam pelos
ares. Chegou à conclusão de que esse era o caminho.

Sabia onde encontrar uma dessas fábricas clandestinas de fo-
gos. Foi até lá e comprou todo o material estocado. Encostou um
caminhão baú de porte médio, caracterizado como se pertencesse
a uma rede de supermercados. Reforçou tudo com alguns tonéis de
material sólido autoinflamável, mais alguns tonéis de pólvora, bas-
tante plástico e papelão. Providenciou uma antiga bolsa de amian-
to, coisa fora do comércio, mas ainda negociada no mercado para-
lelo. Comprou uma centena de pen drivers é, só então, deslocou-se
para a localidade da ação. 

Pilotandoumamotoalugada,observoupessoalmenteacampa-
na estabelecida pela polícia. A vigilância era frouxa, o revezamento
aconteciaacada12horas,quatroagenteseapenasumveículo. Certa
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JoséNivaldoJunior
hora os caras foram se alimentar em um restaurante na beira da es-
trada. Aproveitando a oportunidade, o caminhão avançou sem ser
percebido. Estacionou bem adiante, discretamente.

Quando a noite chegou, passou pelo local um carro de som fa-
zendo propaganda de um suposto circo, música nas alturas. Nesse
momento, o caminhão se aproximou do celeiro, fora das vistas e
do alcance dos ouvidos dos policiais. Quatro homens fortes rapi-
damente descarregaram tudo, em meia hora essa parte do serviço
estava feita. O carro de som voltou, o caminhão se afastou, pouco
tempo depois passava de volta pela estrada de terra, sem chamar
atenção, indo na direção da cidade próxima.

Perto da meia-noite, começou um tiroteio a certa distância, os
policiais desviaram sua atenção para o local dos disparos. Tudo de-
vidamente providenciado, bandidos vindos de longe para cumprir
um papel.

Foi a senha para JB, que já tinha embebido os papéis guarda-
dos com gasolina, providenciar um incêndio para que o plástico e
o material autocombustível garantissem a destruição dos compu-
tadores e arquivos. Com calma, tinha copiado em um HD externo
os segredos armazenados e destruído a memória do computador
estratégico com ácido. Jogou a bolsa de amianto contendo o pen
drive com as informações que confirmavam trechos da delação do
herdeiro em uma extremidade do celeiro, de modo a que fosse facil-
mente encontrada. Antes do fogo ganhar proporção, acendeu um
longo rastilho de pólvora, que serpenteava em direção a sucessivos
barris de pólvora bem intercalados. Em seguida, saiu em silêncio,
fechou o cadeado e empurrou a moto aproximadamente 200 me-
tros até ouvir a primeira explosão. Só então ligou a máquina e se-
guiu na direção oposta.

Depois que os estrondos cessaram, o incêndio se propagara e
devastara tudo, alguns motobois e automóveis circularam em tor-
no do prédio destroçado, eliminando a possibilidade de que rastros
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de pneus servissem de pista. A perícia ia demorar analisando os es-
combros e dificilmente chegaria a alguma conclusão.
O serviço estava completo. A polícia e a Justiça saberiam de
onde partiu a ordem, mas não tinham como provar. Para não pas-
sarem recibo de incompetência, provavelmente cumpririam o acor-
dado com o delator, usando como argumento que falara a verdade.
O pen drive provava que a delação era verdadeira. O resto foi des-
truído, culpa de quem deixou vazar. E, de qualquer modo, teriam
novas vítimas no papo, pelo menos uma nova fase da Operação es-
tava garantida.

No dia seguinte, instalado no seu hotel de costume, JB pos-
tou uma mensagem-senha em Rede Social. Não demorou e rece-
beu o envelope com as indicações a seguir. Encontrou o Máscara,
entregou o material copiado e as contas em paraísos fiscais para o
depósito dos seus honorários. Despediu-se e foi beber um uísque
envelhecido 30 anos contemplando o pôr do sol na Lagoa Rodrigo
de Freitas.

Sua cabeça aos poucos excluía os detalhes da aventura recente
e os substituía por lembranças de Elisa. No dia seguinte, iria para
São Paulo, conforme combinado, à procura da mulher amada.



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  • 2. V. O máscara de ferro
 Miolo Tudo pelos ares-.indd 44 06/04/2018 16:42:23
  • 3. . 45 tudopelosares No dia seguinte, antes mesmo de sair da cama, JB consul- tou no celular o número de Elisa. Ele estava desbloqueado. Não re- sistiu e passou uma mensagem. Como desconhecia as condições dela para verificar o celular, recorreu ao genérico criativo. Algo que dissesse tudo sem comprometer nada. Enviou uma só palavra: Maravilha. E aguardou a resposta. Essa veio, rápido, de uma forma sintética e objetiva: Hoje, mesma hora, mesmo local.
 Impactou. E o remeteu ao imenso limbo da dúvida. É que ele tinha viagem marcada naquela tarde. Iria ao Rio de Janeiro. Um cliente, não sabia ainda qual, precisava dos seus préstimos. O cha- mado era mais que eloquente. Algumas empresas às quais prestava serviços estavam metidas até o pescoço em alguma ou algumas des- sas Operações de nomes eruditos e exóticos, que tinham se tornado rotina no panorama político e empresarial do País. Ou tinha caído nas mãos da chamada República dos Investigadores, um país den- tro do País, centro das atividades da Polícia, do Ministério Público e de alguns juízes federais de primeira instância, que estavam intro- duzindo uma nova dinâmica ao processo judiciário do Brasil. 
 Muitas pessoas, de forma visível e ostensiva, aplaudiam in- condicionalmente aquela estratégia. Consideravam que investi- gadores, procuradores e juízes estavam combatendo a corrupção, destruindo conluios empresariais danosos, colocando políticos e empresários nas cadeias, anteriormente reservadas a pretos, po- bres e prostitutas. Os únicos presidiários ricos, até então, eram os milionários líderes do tráfico de drogas. A tal Operação surgiu quase do nada como verdadeira Operação Mãos Limpas verde- -amarela. Como sua inspiração original, na versão italiana, haveria de restaurar um idealizado panorama de honestidade no trato da coisa pública, acreditavam os seus defensores. Outros pensam diferentemente, mas se expressavam com mais cautela para não afrontar a classe média engajada e setores da grande mídia. São muitos os que cultivam restrições a tais práti- cas. Mas são bem menos barulhentos. Para estes, não se fazia nessa Miolo Tudo pelos ares-.indd 45 06/04/2018 16:42:23
  • 4. 46. JoséNivaldoJunior República mais que justiçamento, nos moldes da justiça aplicada com as próprias mãos nos filmes de faroeste. 
 O principal argumento era que tais práticas atropelavam leis e procedimentos, desrespeitavam a Constituição, a jurisprudên- cia e o bom senso. E, além disso, alimentavam uma crise política artificial, inibindo o protagonismo do Brasil no denominado con- certo das nações. Desperdiçando, dessa forma, oportunidades de ouro na disputa por espaços no cenário internacional. Pior ainda. Desmontavam um modelo empresarial competitivo, construído com muitas dificuldades, que garantira a formatação de grandes corporações verde-amarelas, capazes de brigar de igual para igual em vários setores da economia globalizada. 
 Para quem pensava nessa linha, a denominada Operação cons- tituía, com suas ramificações, um instrumento do imperialismo. Os objetivos eram desmoralizar e fragilizar os políticos para, com isso, facilitar o retrocesso do Brasil ao seu antigo papel, definido desde a era colonial. Ou seja, fornecer ao mercado internacional matérias primas e produtos agropecuários. E, em troca, acolher montadoras de diversos setores destinadas a fabricar produtos com tecnologia e componentes essenciais importados. Que vinham para cá explorar nossa mão de obra barata e se locupletar de um mercado pujante, de dimensões continentais. A democracia é ótima nesse aspecto. Cada qual pensa como quer e se expressa livremente, sem risco de ser pu- nido por isso, como acontece nas ditaduras.
 Os opositores da Operação atribuíam também à iniciativa a inconfessável intenção de reduzir o Brasil à mesma categoria su- balterna de outros dóceis países do Terceiro Mundo. Em nome de uma causa louvável, estavam condenando o País a mero importa- dor de soluções científicas e tecnologia de ponta. 
Queiram ou não, argumentavam, os políticos são os guardiões da pátria. Sua desmo- ralização quebra a capacidade de resistência do País.
 Tais teses têm sido discutidas com ardor nas redes sociais, dividindo famílias, fazendo amigos de longas datas ficarem trom- budos uns com os outros. Até o momento, a intolerância não dá Miolo Tudo pelos ares-.indd 46 06/04/2018 16:42:23
  • 5. . 47 tudopelosares sinal de que entrou em baixa. A cada momento surge um fato novo que reacende tudo e a troca de acusações ascende com toda a força. Insultos tomam o lugar de argumentos, acusações são disparadas para todos os lados.  JB proclamava-se apolítico, procurava saber de tudo, mas não ter opinião sobre nada. Era um ser contraditório, como todo mun- do. Autoproclamando-se individualista, queria resolver primeiro seus problemas. Por outro lado, cultivava uma brasilidade arraiga- da. Melhor dizendo: uma exaltada pernambucanidade. O meu esta- do é a minha pátria, afirmava. Nessa linha, jamais admitira morar no Sul ou em Brasília, onde estavam centralizados os seus interes- ses. Muito menos no exterior. Preferia viver em verdadeiro zigue- -zague aéreo. Dizia que seu corpo era formado por cabeça, tronco, membros e aviões.
 Os filhos conheciam o mundo, estudaram fora, eram livres para decidir o destino de cada qual. No entanto, todo o estímulo fi- nanceiro e ideológico, era direcionado para viverem no Brasil. Para ele, repetindo o pintor Cícero Dias, o mundo começava no Recife. O resto era lugar para trabalhar e ganhar dinheiro. Trabalho não tem fronteira, dinheiro não se expressa em língua nenhuma. Em qualquer lugar encontra boa hospedagem.
 Falando em trabalho e dinheiro, sabia que a convocação que lhe fora feita, usando códigos preestabelecidos e fora do alcance de rastreadores oficiais, significava assunto importante e urgente. Café da manhã em algum lugar do Rio de Janeiro, saberia o local pouco antes da hora. Precauções próprias do Máscara de Ferro, personagem das sombras a serviço de governos, grupos políticos, grandes corporações. Tão discreto e eficiente que, apesar de ter acobertado algumas das maiores falcatruas de todos os tempos, ja- mais fora mencionado em nenhuma delação ou sofrido investiga- ção de qualquer natureza. 
 De um compromisso com ele, ninguém tinha como escapar. A não ser que quisesse ser eliminado do seu círculo e, em consequên- cia, provavelmente, da própria vida. O Máscara era assim chamado Miolo Tudo pelos ares-.indd 47 06/04/2018 16:42:24
  • 6. 48. JoséNivaldoJunior porque poucos, talvez ninguém, conhecesse sua verdadeira identida- de. Nada de sua vida privada era público e notório. Era um ser envol- to em mistérios e sabia administrar bem essas versões fantasiosas.
 Rezava a lenda que nunca dormia duas noites no mesmo local, não possuía imóveis, contas bancárias, cartões de crédito ou débi- to, sequer automóveis. Andava de táxi, não usava ônibus nem avião, só frequentava ambientes controlados. Mudava de celular quantas vezes fosse necessário.
 Quando queriam lhe convocar, usavam códigos nas redes so- ciais. A partir daí, ele ditava as regras para os encontros. Em pouco tempo, vindo ninguém sabia de onde, quem o convocava recebia um celular irrastreável e através dele combinavam o encontro. Cara a cara, sem intermediários, sem detalhes, tudo acertado de uma vez, pagamento após a execução, em moeda estrangeira, cada vez de forma diferente. 
 Encontros geralmente realizados em bares ou restaurantes em horário de pouco movimento, a água já se encontrava sobre a mesa, e no final, terminada a conversa, alguém servia um cafezi- nho. Todos sem celulares, sem canetas nos bolsos, usando camisas de mangas curtas, havia sempre uma pessoa para recolher os pa- letós e discretamente passar um detector de metais ou emissores de ondas magnéticas. Essa rotina o Máscara usava desde sempre, muito antes de alguém imaginar que um grande empresário seria condenado a décadas de prisão ou que um presidente ou ex-presi- dente da República pudesse ser investigado como qualquer meque- trefe suspeito de uma falcatrua banal. 
 Esse ritual de cuidados era uma das razões do seu sucesso. A outra era a eficiência. Não havia registro de fracasso ou vazamento. Era o encarregado pelas principais empreiteiras, inclusive algumas que já tinham malfeitos identificados e estavam sob rigorosa inves- tigação, para executar missões secretas e delicadas. Para isso, ele contava com o que chamava de círculo. Um seleto e testado grupo de operadores, capazes de inimagináveis proezas. 
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  • 7. . 49 tudopelosares Compunham o círculo do Máscara pessoas acima de qualquer suspeita, livres de qualquer investigação, aptos para executar ta- refas difíceis, importantes e frequentemente ilegais. Com uma característica em comum: todos tinham uma atividade legal, uma vida socialmente estável, eram pessoas normais circulando na so- ciedade. Esses operadores eram os olhos, ouvidos e principalmente as mãos do Máscara. Suprimiam todos os vestígios e executavam tarefas que, uma vez concluídas, não deixavam rastros sobre os autores ou mandantes. Podiam pensar, imaginar, especular. Isso é inevitável. Porém provar, que é bom, jamais.
 JB era um dos principais executores da malha do Máscara de Ferro, talvez o mais importante deles. Por isso, nunca se envolvia em operações, digamos, banais dos seus clientes, como transportar di- nheiro, pagar subornos e outras atividades triviais com esse perfil.
 O Máscara e o próprio JB consideravam tais práticas rotinei- ras estruturadas em nível de amadorismo tão gritante que jamais poderiam dar certo. Só a falsa sensação de impunidade, combina- da com a prepotência e arrogância dos poderosos poderia justifi- car tamanha imprudência. Em algumas poucas ocasiões nas quais o papo se estendeu um pouco, o Máscara profetizou: Isso tudo que nossos amigos estão fazendo vai dar em merda. Nós vamos ser convocados para salvar o que puder ser salvo no resgate do naufrágio. Chegará a vez do nosso trabalho ser reconhecido e bem pago. Tem paciência, garoto, nossa hora ainda vai acontecer. JB percebera o perigo de vulgarizar as patifarias a tempo. A operação na África foi a última em que metera a mão na lama, como se diz. Mesmo assim, discretamente, sem sair da linha, atuando em solo estrangeiro. A rigor, nem cometeu crimes. Mesmo assim, apro- veitou o sucesso para mudar de patamar. A partir daí, dedicou-se a fazer o chamado lobby limpo e eficiente, que garantia o seu trânsito junto a grandes empresas públicas e privadas e a gente importante dos três poderes. Era jeitoso, teve sucesso, conseguiu articular ne- gócios legítimos, fazia o trabalho em alto nível de eficiência, encer- rava a sua participação. E o que é mais importante: garantia uma Miolo Tudo pelos ares-.indd 49 06/04/2018 16:42:24
  • 8. 50. JoséNivaldoJunior renda declarada que justificava alguns investimentos e o seu alto padrão de vida.
 Mas tudo isso era a parte visível do iceberg. A sua expertise, a sua grande especialidade era conhecida parcialmente por uns poucos companheiros de longas datas e, na totalidade, apenas pelo Máscara. Era a já mencionada capacidade de limpar sujeiras sem deixar rastros. 
 Existiam, como foi dito, dois JB: o lobista bem-sucedido e o criminoso muito bem remunerado. Se a sua face oculta tivesse sido mais acionada lá atrás, diversas investigações frutíferas te- riam dado em nada, muita gente teria evitado as delegacias e as prisões, empresas teriam salvo bilhões. Maldita autossuficiência, maldita cegueira. JB odiava as expressões eu bem que disse e eu avisei. Soavam para ele como um atestado de sua própria incapacidade de convencer pela qualidade dos serviços prestados.
 As coisas, porém, acontecem da forma e do jeito que têm que acontecer. Foi necessária uma hecatombe para que os grandes empresários finalmente concluíssem que trabalhos como os que o Máscara intermediava e ele fazia acontecer valiam cada dólar desembolsado. Mas, para muitos, era tarde. Agora, com delações premiadas comprometendo tudo e todos, recorriam ao Máscara quando algo muito valioso estava em jogo. Fora disso, só as hon- rosas exceções de praxe. Para cada trabalho, o agenciador escolhia entre o seu seleto núcleo de operadores aquele com o perfil mais apropriado para a missão.
 Esse era o dilema de JB naquele dia. Como conciliar o compro- misso profissional e o afetivo? O primeiro não comportava negocia- ções, sequer tinha como retornar para contrapropor outro horário. Com Elisa podia ter uma chance de acomodar as coisas. Tentou o diálogo, mas o celular já estava novamente bloqueado. Ficou iner- te. A experiência não funciona quando se trata de assuntos mais profundos do coração. E não existe mente que se mantenha fria e isenta sendo dominada pela turbulência da paixão.
 JB cometeu a infantilidade de ligar para o escritório de Elisa, na esperança de ser atendido dessa vez. Inútil. A secretária repetiu Miolo Tudo pelos ares-.indd 50 06/04/2018 16:42:24
  • 9. . 51 tudopelosares o ritual anterior. Registrasse o assunto e aguardasse retorno. Teve que se contentar. Passou horas contemplando a mensagem seca. Mesma hora, mesmo lugar. Conformou-se.
 Correu o risco de violar as suas regras na relação com o Máscara, atropelar seus métodos. Não procedeu com as precauções de costume. Reservou um voo na madrugada, prática que evitava. Voar durante o dia é bem menos cansativo e permitia chegar cedo para repousar bastante e estar em forma e descansado nos encon- tros profissionais, principalmente aqueles que exigiam maior ener- gia e concentração. Além disso, tinha como norma de segurança nunca depender de uma única opção de voo. Na sua atividade das sombras, faltar a encontros agendados com 24 horas de antecedên- cia era imperdoável. Significavam que alguém morrera ou no míni- mo encontrava-se na UTI. Fora isso, nada justificava.
 Para se garantir, deixou um jatinho de prontidão, que seria desmobilizado quando já estivesse na aeronave, prestes a decolar. E assim tentou um acordo íntimo entre razão e emoção. 
Esperou tenso, o dia inteiro, o momento do encontro com Elisa. É lugar co- mum, mas tem que ser dito: quanto mais a gente espera com pres- sa, mais o tempo demora a passar. 
 JB chegou cedo ao shopping. Cortou o cabelo, fez massagem nos pés, massagem na cadeira, comprou cuecas, um par de sapatos, algumas camisas. Chegou ao local do encontro pontualmente. 
A diferença é que, dessa vez, ela estava prevenida. Posicionou-se de modo a que a repetição do beijo fosse impossível. Senta aí, ordenou apontando a cadeira à sua frente, do outro lado da mesa. Obedeceu. Cappuccino? Aceito. Moça, por gentileza, dois cappuccinos, água com gás.
 Ficaram se contemplando sem ternura, sem desprezo, ape- nas um olhar tenso, desprovido de emoção. Tomaram a bebida, as mesas vizinhas esvaziaram, ela começou um discurso ensaiado, em tom absolutamente neutro: Querido, a primeira vez aconteceu por acontecer, devia ter ficado por ali, eu bem que tentei, teria sido melhor para nós dois. E prosseguiu: Ontem o senhor me armou uma emboscada, teve sucesso. Me surpreendeu e desnudou minha alma, coisa que eu não gosto, Miolo Tudo pelos ares-.indd 51 06/04/2018 16:42:24
  • 10. 52. JoséNivaldoJunior mas novamente aconteceu. Eu não consigo mais manter minha aparente indiferença porque você sabe que estou tão envolvida quanto o senhor. A mistura de tratamentos demonstrava o nervosismo, apenas super- ficialmente sob controle.
 JB ensaiou dizer alguma coisa, ela interrompeu. Espere. Deixe eu terminar, depois você fala o quanto quiser. E prosseguiu: Querido, es- tou separada, mas sou uma mulher casada e conceituada. Não sou santa, mas nunca me meti em aventuras fúteis. Para mim, qualquer pessoa pode transar com qualquer pessoa uma vez, depende das circunstâncias, como aconteceu conosco.
 
Quem transa uma vez, transa duas, até para confirmar caso tenha sido bom ou dar outra chance ao prazer, se ocorreu um fracasso. Confirmamos isso ontem. Se também foi bom, na verdade ótimo, naquele desconforto, sem álcool, só com gosto de café na boca, tem tudo para ser bom por muito tempo. A questão é a próxima vez. A terceira vez muda a relação de categoria, amore. Depois de três trepadas, passa a ser caso. E caso é sempre complicado.
 Parou um pouco, bebeu um gole de água e repetiu: Caso pra mim é complicado. Meu marido, a quem já lhe disse que ainda amo, e mui- to, não é uma pessoa fácil. Não preciso falar, você conhece a fama. Ainda não entendi as razões da separação, tenho quase certeza de que não é outra mulher, apesar dele andar se exibindo com putas de luxo no Recife, no Rio, em São Paulo, em Brasília. 
 E prosseguiu: Intuição de mulher não se engana, aquilo é encena- ção, talvez para me causar ciúme, ainda não alcancei os verdadeiros moti- vos desse teatro. Eu também não sou uma pessoa fácil. Muitos me acham completamente louca, não estou nem aí. Pessoas normais trabalham em bancos ou fazem concurso público. Eu sou diferente, gosto de ser assim.
 E foi adiante sem dar chance ao outro de argumentar nada. Confesso que você me atraiu. Ou melhor, ele me atraiu através de você. Não se engane. Quando eu te beijo, é ele que estou beijando. Quando te como, é ele que estou comendo. E não tenho ideia do quanto vai durar isso e, quando acabar, o que vai sobrar de nós dois. Porém ontem decidi que não vou instigar nem fechar a porta. Deixa rolar. Só tenho uma certeza: não vou ter um caso banal com você. 
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  • 11. . 53 tudopelosares Ao ouvir o advérbio, JB respirou aliviado. Lembrou de uma ladainha dos seus tempos de estudante, ainda no interior: mas, porém, contudo, todavia. Palavras mágicas que invertem o rumo da conversa. Bem se diz que o advérbio é a perdição dos justos e a salvação dos desenganados. Por isso, seu olhar recuperou o brilho, a vida voltou a sorrir. Estava tudo bem.
 Já nem prestou muita atenção na conversa de Elisa, que pros- seguiaenfática:Avidaémuitocurta,intensaepreciosaparacasosbanais. Eu não me perdoaria. Não justifica os riscos. Vamos dar tempo ao tempo. Vou aproveitar o feriadão do dia 8 de dezembro (Festa da Conceição, pa- droeira informal do Recife) para trabalhar em São Paulo. Me procure lá, se quiser, o celular estará desbloqueado para você. Pode passar men- sagem ou ligar direto. Lá, a gente conversa, mas nem pense em trepar. A chance é zero. 
 A chance zero trouxe JB de volta à conversa. Se não vai rolar amor, para que encontrar? Ela prosseguiu: Nossa próxima trepada, se houver, será um marco em nossas vidas. Algo inédito, apoteótico, que real- mente valha a pena. É isso. Hoje quem paga sou eu, pode ir. Agora mesmo, sem delongas. Vá como o homem que você é. Sem vacilar, sem olhar para trás. Até São Paulo, se você quiser e puder. Lá combinaremos tudo, ponho- -lhe a par dos meus planos, se você topar, eu garanto que vou gostar.
 Jogou um beijinho com a mão, os olhares se cruzavam, tinham recuperado a ternura, a paixão. JB devolveu o beijinho, levantou, saiu, apressou o passo, seguiu firme, não olhou para trás. Já que era assim, vamos tentar ajeitar o resto. Sem demora rumou para o ae- roporto.
O voo das 8 estava atrasado, conseguiu vaga, foi dormir no Rio de Janeiro. Acordou no horário previsto, nenhuma mensagem no celular. Ligou para a recepção. Sim, um envelope fora entregue para ele quase naquele instante.
 Logo o mensageiro bateu na porta e, em poucos instantes JB ficou sabendo a hora exata e o local da conversa. Elisa era, naquele instante, uma lembrança envolvente, um enlevo bom. O encontro com o Máscara de Ferro concentrava agora todas as suas atenções. Naquele momento, novamente a razão recuperava o seu transitório controle sobre a lembrança e a saudade.
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  • 12. VI. Missão impossível 
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  • 13. . 55 tudopelosares O Máscara recebera na véspera uma missão delicadíssi- ma, uma das mais complexas da sua carreira, marcada pela dificul- dade em cada ação. Nunca tivera tarefa fácil, mas aquela carregava riscos mortais. Falhar era impensável.
 Certa empreiteira, uma das maiores do mercado, fora alcan- çada em cheio pela Operação. Sem saída aparente, optara, tempos atrás, por fazer uma ruidosa delação premiada. Flagrada em deze- nas de falcatruas, no Brasil e no exterior, não tinha como escapar de pesadas perdas financeiras, e quase uma centena de seus prin- cipais executivos estava destinada a mofar nos cárceres infectos do País. Decidiram, pois, agir de acordo com a antiga filosofia de entregar anéis para tentar preservar os dedos.
 Entregar anéis, bem entendido, o que é muito diverso de en- tregar os anéis. O artigo no plural faz toda a diferença. Entregaram anéis, até joias da coroa, pagaram multas altíssimas, negociaram acordos de leniência corporativa, levantaram recursos vendendo empresas sólidas e limpas, conseguiram uma sobrevida no merca- do. Porém, guardaram alguns anéis valiosos.
 Em qualquer entendimento complexo, o maior risco de falha reside no fator humano. Pessoas são, por natureza, imponderáveis e incontroláveis. Cada qual reage de forma diferente diante do pe- rigo, a desmoralização, a exposição na grande mídia. O risco maior decorre da sogra e das filhas, repetia o presidente do Conselho, fundador e líder do poderoso conglomerado. Sogras, filhas, espo- sa, parentes, amigos próximos são capazes de exercer uma grande pressão sobre um acusado, visto que também pagam um alto custo pelos crimes dos outros, sem ter culpa no cartório.
 Assim, quando ficou decidido que diretores importantes, até fa- miliares próximos, seriam presos como bois de piranha, para aplacar a sanha da mídia e arrefecer os ímpetos justiceiros da sociedade civil e das instituições punitivas, foi preciso uma negociação muito dura e difícil, para ninguém ficar atirando a esmo. Tal encaminhamento deixou marcas profundas, fez brotar mágoas incontornáveis. Porém, Miolo Tudo pelos ares-.indd 55 06/04/2018 16:42:24
  • 14. 56. JoséNivaldoJunior no geral, ficou tudo acertado. Uma meia dúzia iria pagar o pato pelo bem de todos e pela sobrevivência do grupo.
 Restavam dezenas de executivos que, conforme combinado com procuradores e juízes, não seriam presos, mas prestariam uma desmoralizante delação premiada e ficariam sujeitos a humi- lhantes penas alternativas. Por um bom tempo seriam submetidos a tarefas impensáveis para eles, como, por exemplo, limpar durante anos latrinas de escolas ou recolher o lixo de equipamentos públi- cos. Além de sofrerem diversas restrições no sagrado direito de ir e vir, como recolhimento em casa à noite e nos finais de semana. 
 Mesmo em situação incomparável em relação a qualquer pre- sídio, o preço era alto. Estariam condenados ao isolamento social, à perda do respeito da família e dos amigos. Não podiam frequen- tar lugares públicos sob pena de sofrer agressões ou hostilidades. Seriam vistos como bandidos, proscritos enquanto vivessem.
 Para que tudo isso funcionasse, foi firmado, primeiro indivi- dualmente, depois coletivamente, um verdadeiro pacto de sangue, um compromisso de vida ou morte. 
 Combinaram direitinho o que cada qual delataria aos investi- gadores. Todos os diretores designados para a delação receberam um roteiro, como se fossem atores de novela. Todos decoraram o seu papel e tiveram que fazer prova oral com sabatina, perante uma soturna banca de advogados com cara de poucos amigos. Se der- rapavam em algum item, caso não conseguissem responder algo a contento, eram dispensados e se apresentavam na sede da empresa 48 horas depois para novamente serem submetidos ao exame.
 Essa encenação tinha sua razão de ser. Apertava parafusos e conduzia ameaças embutidas. Já ficara acertada a remuneração que cada diretor receberia nos próximos 10 anos, montante sufi- ciente para que todos se aposentassem confortavelmente, a desmo- ralização pessoal seria bem aquinhoada. Dinheiro não significaria mais problema na vida de ninguém do grupo. O único risco era al- guém não cumprir o script.
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  • 15. . 57 tudopelosares Desse modo, quando se despediam, aprovados no teste e ap- tos para se apresentarem às autoridades para sacramentar a de- lação, recebiam um dossiê de sua própria vida. Relato completo. Esposa, filhos, endereços, hábitos, parentes, amantes, falcatruas não detectadas, uma radiografia completa. Não era preciso dizer nada. A papelada era mais do que eloquente. Mesmo assim, vinha a advertência explícita. Com palavras grosseiras, o portador, fun- cionário das antigas, parceiro do poderoso chefão desde o início controvertido e nebuloso do grupo, selava a entrega do dossiê. A ameaça ficava na conta do próprio emissário, conhecido pelo su- gestivo apelido de Papel de Embrulhar Prego. 
 O motivo que levava JB àquela conversa com o Máscara gi- rava exatamente em torno de anéis não entregues naquele pro- cesso. Registros de segredos capazes de jogar por terra todas as delações, desfazer os acordos e destruir definitivamente o gru- po jaziam armazenados em algum lugar secreto, conhecido por apenas duas pessoas: o presidente do Conselho e o seu filho, líder executivo do conglomerado.
 Era realmente um lugar secreto, um armazém em nome de um morto, sem nada que o ligasse formalmente ao grupo. Para lá foram enviados às pressas documentos que não dera tempo de es- canear e cerca de 50 computadores, sendo que um deles, apenas um, armazenava 100% off-line as informações fundamentais para o arriscado jogo de sobrevivência do conglomerado.
 Tudo de estratégico encontrava-se ali. Nenhuma informa- ção estava armazenada nas nuvens, nada transitado na internet. O Máscara fora encarregado do transporte e da montagem de um sistema de vigilância executado por um seleto grupo de ho- mens de confiança. Exclusão total de equipamentos eletrônicos. Considerava mais eficiente e seguro o uso do velho e bom vigia, ar- mado com um revólver calibre 38 na cintura e rifle Whinchester nas mãos, aqueles dos filmes de faroeste.
 Tais dados, se viessem a ser divulgados com estardalhaço, arrastariam para o mar de lama atores importantes do mercado Miolo Tudo pelos ares-.indd 57 06/04/2018 16:42:24
  • 16. 58. JoséNivaldoJunior empresarial e financeiro, até então imunes ao furacão das inves- tigações. Essa preservação era fundamental para as empresas que estavam na linha de tiro. Baleadas, aguentavam o tranco, dirigindo o foco de suas delações para figurinhas carimbadas dos mundos empresarial e político, gente que não tinha mais como escapar. Outros, no entanto, tão ou mais comprometidos do que os que fo- ram apanhados, continuavam operando nos seus setores como se nada tivesse acontecido. Sem pagar um pai nosso de penitência, pelo contrário, usufruindo de benesses antigas e novas, ganhando espaço e dinheiro como nunca.
 Dizem alguns que, uma vez desmoralizado, o melhor para um empresário é que outros da mesma posição se lambuzem tam- bém, vira tudo farinha do mesmo saco, o sujo não pode falar do mal lavado. Não era essa a filosofia dos clientes do Máscara de Ferro. Quanto menos gente envolvida, melhor. Quanto mais pessoas im- portantes devendo favor, sabendo que poderiam ter sido objeto de troca nos inquéritos e processos, mas foram preservadas, mais van- tagens podiam ser obtidas. 
 A determinação era entregar quem já estava ou seria inevita- velmente apanhado e proteger quem ainda tinha chance de esca- par. Era uma estratégia complexa, uma linha tênue. Todas as pro- vas que não caíram nas malhas da polícia deveriam ser destruídas. Deveriam. Mas não foram. E, de algum modo isso foi em algum momento insinuado para, digamos assim, as pessoas certas.
 Saber que só não estava queimando no fogo do Inferno porque alguém foi discreto em momentos amargos, que alguns mostra- ram-se capazes de resistir às pressões e tentações para salvar a pele alheia, representava um valor expressivo no mercado. Ter consciên- cia de que, dependendo de certas indiscrições, ainda está sujeito a também entrar no turbilhão, desperta um inimaginável espírito de solidariedade. 
Para isso, era preciso guardar provas que pudessem comprometer terceiros poderosos. O método constituía uma forma sutil de chantagem, um modo de ter parceiros poderosos na mão. Miolo Tudo pelos ares-.indd 58 06/04/2018 16:42:24
  • 17. . 59 tudopelosares Se a estratégia desse certo, o grupo sobreviveria, quem sabe, mais adiante, recuperaria o seu protagonismo.
 Não existe plano perfeito, claro. O furo dessa vez veio de onde ninguém podia esperar. O filho, verdadeiro príncipe regente de um império talhado para ser hereditário, foi entregue à prisão como um cordeiro imolado. Estoicamente, pensou que se sacrificava pela empresa. Mas, com o passar dos meses, foi perdendo a paciência. Achou muito ruim os desconfortos do cárcere, que se tornavam cada vez menos suportáveis. Sentiu muito e reclamou, sem ser ou- vido, do abandono a que estava relegado.
 Gente que beijava sua mão todos os dias, que excedia em baju- lação, sequer se dava ao trabalho de enviar chocolates, visita, então, nem pensar. Faltaram atitudes explícitas de solidariedade. Pelo acor- do original, deveria passar cinco anos preso em regime fechado. Era muito. Desse modo, resolveu por conta própria tentar abreviar esse prazo. Ainda mais quando soube, através da imprensa, que o cunha- do, marido da irmã mais velha, fora designado para o seu lugar.
 Prisãoatéfuncionaparaevitarfugas,maséinoperantefrenteà invasão de fofocas. As informações cavilosas se infiltravam com fa- cilidade entre as grades. Versões sinuosas sobre o que acontecia no coração do conglomerado o deixavam furioso. Na verdade, sua ex- pectativa era cumprir a pena heroicamente e voltar ao comando do grupo para liderar a recuperação como se fora um Nelson Mandela empresarial. Os anos de cárcere seriam sua maior credencial.
 Ao saber que o novo chefe, em pouco tempo, mudou completa- mente o seu modo de administrar, fazendo críticas abertas ao mo- delo anterior, urrou literalmente de raiva. Além disso, o cunhado demitiu sumariamente todas as pessoas da sua confiança, cortou regalias de sua família, como carros e motoristas. A esposa, pouco habituada a essas providências, teve que comprar automóveis, con- tratar serviçais, ninguém apareceu para ajudar.
 O pingo d’água foi o cunhado ter deixado de depositar o seu pró-labore, afinal preso não trabalha, e quem não trabalha não ga- nha, dizia pelos gabinetes. Usava o termo da moda, compliance, para Miolo Tudo pelos ares-.indd 59 06/04/2018 16:42:24
  • 18. 60. JoséNivaldoJunior justificar suas atitudes. Novos tempos, novas práticas, os erros do passado são para serem corrigidos e esquecidos. Ele mesmo não tinha compromisso com os equívocos de ninguém. 
 O príncipe deposto engoliu o elefante da prisão, mas engas- gou nos mosquitos das mesquinharias. Com os bens bloqueados, o dinheiro começou a faltar em casa. Tentou estabelecer um contato com o pai, recebeu respostas vagas. Solicitou uma visita, nada feito. Mandou um recado áspero para o cunhado, obteve como resposta o silêncio. Foi demais para ele. Sentindo-se traído e abandonado, resolveu chutar o pau da barraca. 
 Aceitara o cárcere, as privações, a perda do conceito. Porém acreditava que, pelo menos no âmbito do seu grupo e do merca- do, teria direito a futura anistia ampla, geral e irrestrita. Percebeu que enganara a si próprio. Não existia caminho de volta. Ele estava excluído do jogo para sempre. Além de constatar tudo isso, encon- trava-se adicionalmente revoltado: o acordo não incluía ser espezi- nhado, degradado, perseguido por sua própria gente. O seu substi- tuto deveria administrar segundo sua filosofia, apenas guardando o lugar para o retorno triunfante. Entretanto, na prática, aplicou- -lhe um golpe. Ao invés de preservado, foi banido. Sacrificou-se por nada. Constatando tudo isso, sentiu-se desobrigado de qualquer compromisso. Na próxima audiência, reabriu negociações em tor- no da sua delação. Ainda tinha muito para contar. Já que estava por conta própria, atuou de acordo com o seu perfil: foi direto, claro e duro. Queria ir para casa imediatamente, alcançaria liberdade integral em mais três anos. Teria liberado par- te do seu patrimônio pessoal para viver sem depender de ninguém. Em troca, entregaria esquemas fraudulentos de financiamentos públicos e privados, beneficiando dezenas de importantes empre- sas, comprometendo os principais nomes do mercado financeiro, além de envolver CEOs e centenas de altos executivos. 
 Indicou, como seu grande trunfo, o local onde encontravam- -se armazenadas as provas, capazes de transformar tudo o que ocorrera até então em mero aquecimento para um grande jogo.
Os Miolo Tudo pelos ares-.indd 60 06/04/2018 16:42:24
  • 19. . 61 tudopelosares termos da negociação e as informações prestadas pelo herdeiro va- zaram em detalhes. O cliente do Máscara, no caso o pai do dela- tor, tinha gente lá dentro acompanhando tudo. Ficou sabendo que o local das provas estava identificado e já sob vigilância. A polícia aguardava apenas que o juiz, designado para o caso, voltasse dos Estados Unidos, onde era aclamado como estrela em evento jurí- dico internacional, para ter em mãos a ordem de busca e realizar a valiosa apreensão.
 O Máscara contou a história resumidamente, apenas o sufi- ciente para JB entender a urgência, a importância e as dificuldades da missão. Retirar o material sob as barbas da Polícia Federal cons- tituía realmente missão impossível e acarretaria novos riscos que o cliente não estava disposto a correr. Era preciso destruir tudo e, paralelamente, salvar o conteúdo do computador que armazenava as informações fundamentais. Ainda por cima deixando preser- vados, no local, registro de determinados documentos capazes de comprovar que o rapaz falava a verdade na sua delação. 
 Isso porque, por mais frio que um homem possa ser, pai é pai. O cliente não queria ver desmoronar todo o trabalho realizado e implodir o grupo, mas também não pretendia frustrar a nova nego- ciação do filho. Pensou que, se estivesse no lugar dele, talvez agisse da mesma forma. Então a tarefa do Máscara era duplamente de- licada: salvar o grupo e manter os termos da delação ampliada do filho. Ou seja, era preciso destruir as provas de forma tal que não pudesse ser questionado: o príncipe cumprira sua parte no acordo. Se a justiça e a polícia não se mostraram confiáveis, ágeis e eficien- tes para captar tudo, problema deles. O herdeiro teria argumentos para preservar as vantagens pretendidas. A ideia para conseguir essa proeza veio do próprio pai. Foi o início de um longo e doloroso processo de reaproximação. Nos últimos meses, um dos parceiros de negócios, da área do beneficiamento de frangos, não estava cumprindo compromissos assumidos, por pura e simples má-fé. Aproveitava a fragilidade do momento para passar a perna no grupo. Tal comportamento Miolo Tudo pelos ares-.indd 61 06/04/2018 16:42:24
  • 20. 62. JoséNivaldoJunior vinha a calhar para os seus propósitos. Os empresários estavam citados na delação ampliada do filho, como beneficiários de uma operação de crédito cabeluda para financiar exportações jamais realizadas efetivamente. O chefe tivera acesso recentemente a documentos que tam- bém comprometiam a turma em outras operações fraudulentas. Adicionalmente, andaram transgredindo práticas e normas do mercado internacional. Colocou as informações em um pen drive e mandou que aquele arquivo fosse preservado para a polícia. Como fazer isso acontecer era parte da missão do Máscara. Se desse cer- to, ajudava o filho, punia os caloteiros e ainda mandava um recado duro para quem pensasse em lhe apunhalar pelas costas. O personagem entregou o dispositivo e forneceu a JB referên- cias, fotos da construção e dos arredores, o segredo do cadeado da porta lateral, o adesivo que diferenciava o computador que conti- nha as informações. Para facilitar sua missão, o prédio já estava sem vigilância desde que a polícia iniciou a campana.  Entregou também uma mala de mão contendo dinheiro e despediu-se com um tom inédito de carinho: Vá lá, cara, não há um minuto a perder.
 O depósito objeto da missão ficava na área rural do estado, a cerca de duas horas de viagem. Porém não saiu imediatamente para o lugar. O estilo define o homem. E o dele incluía primeiro absorver as informações, formular um plano e só então se movi- mentar. Em pouco mais de duas horas, não apenas sabia o que fazer, como já tinha providenciado o básico necessário para o seu plano. O retorno do juiz estava programado para o dia seguinte, teria o resto do dia e a noite para agir. Parecia quase nada, mas para ele era o bastante.
 O que aparenta ser difícil, ou mesmo impossível, fora do al- cance e do raio da imaginação do leigo, para aqueles que conhe- cem o caminho das pedras é muitas vezes até fácil. Como sempre procurava fazer, JB se cercou de precauções por todos os lados. Miolo Tudo pelos ares-.indd 62 06/04/2018 16:42:24
  • 21. . 63 tudopelosares Constituía parte do seu estilo utilizar peças recrutadas ao acaso, sem ligações entre si. Pessoas que topassem qualquer parada e es- tivessem dispostas a desaparecer por um tempo ou até se mudar de vez em troca de um bom dinheiro. Tinha um olho privilegiado para identificar esses tipos. Nas negociações, usava capacete e roupa de motoqueiro, se necessário alguns adereços de disfarce. Difícil ser posteriormente identificado. Se algum amigo ou conhecido fosse chamado a depor sobre ele, seria capaz de jurar que sequer tolerava andar de bicicleta, imagine usar moto.
 Assim funcionava o lado oculto de JB. Nas atividades obscuras mudava o modo de vestir, de andar, utilizava gírias e expressões que não faziam parte do seu vocabulário. Comia pratos populares e só bebia refrigerante, coisa que nunca fazia nos restaurantes e bares que frequentava habitualmente. Era outro ser, sem conexão com ele mesmo. Uma de suas qualidades era saber onde encontrar as coisas certas para o plano ideal. Algo simples veio à sua mente: explosões em fábricas clandestinas de fogos geram notícias impac- tantes, mas logo somem do noticiário. Nunca, jamais, em tempo algum, qualquer jornalista se deu ao trabalho de investigar escritu- ras, nomes de proprietários, fornecedores, clientes e histórico dos funcionários de algum desses estabelecimentos quando iam pelos ares. Chegou à conclusão de que esse era o caminho.
 Sabia onde encontrar uma dessas fábricas clandestinas de fo- gos. Foi até lá e comprou todo o material estocado. Encostou um caminhão baú de porte médio, caracterizado como se pertencesse a uma rede de supermercados. Reforçou tudo com alguns tonéis de material sólido autoinflamável, mais alguns tonéis de pólvora, bas- tante plástico e papelão. Providenciou uma antiga bolsa de amian- to, coisa fora do comércio, mas ainda negociada no mercado para- lelo. Comprou uma centena de pen drivers é, só então, deslocou-se para a localidade da ação. 
 Pilotandoumamotoalugada,observoupessoalmenteacampa- na estabelecida pela polícia. A vigilância era frouxa, o revezamento aconteciaacada12horas,quatroagenteseapenasumveículo. Certa Miolo Tudo pelos ares-.indd 63 06/04/2018 16:42:24
  • 22. 64. JoséNivaldoJunior hora os caras foram se alimentar em um restaurante na beira da es- trada. Aproveitando a oportunidade, o caminhão avançou sem ser percebido. Estacionou bem adiante, discretamente.
 Quando a noite chegou, passou pelo local um carro de som fa- zendo propaganda de um suposto circo, música nas alturas. Nesse momento, o caminhão se aproximou do celeiro, fora das vistas e do alcance dos ouvidos dos policiais. Quatro homens fortes rapi- damente descarregaram tudo, em meia hora essa parte do serviço estava feita. O carro de som voltou, o caminhão se afastou, pouco tempo depois passava de volta pela estrada de terra, sem chamar atenção, indo na direção da cidade próxima.
 Perto da meia-noite, começou um tiroteio a certa distância, os policiais desviaram sua atenção para o local dos disparos. Tudo de- vidamente providenciado, bandidos vindos de longe para cumprir um papel.
 Foi a senha para JB, que já tinha embebido os papéis guarda- dos com gasolina, providenciar um incêndio para que o plástico e o material autocombustível garantissem a destruição dos compu- tadores e arquivos. Com calma, tinha copiado em um HD externo os segredos armazenados e destruído a memória do computador estratégico com ácido. Jogou a bolsa de amianto contendo o pen drive com as informações que confirmavam trechos da delação do herdeiro em uma extremidade do celeiro, de modo a que fosse facil- mente encontrada. Antes do fogo ganhar proporção, acendeu um longo rastilho de pólvora, que serpenteava em direção a sucessivos barris de pólvora bem intercalados. Em seguida, saiu em silêncio, fechou o cadeado e empurrou a moto aproximadamente 200 me- tros até ouvir a primeira explosão. Só então ligou a máquina e se- guiu na direção oposta.
 Depois que os estrondos cessaram, o incêndio se propagara e devastara tudo, alguns motobois e automóveis circularam em tor- no do prédio destroçado, eliminando a possibilidade de que rastros Miolo Tudo pelos ares-.indd 64 06/04/2018 16:42:24
  • 23. . 65 tudopelosares de pneus servissem de pista. A perícia ia demorar analisando os es- combros e dificilmente chegaria a alguma conclusão. O serviço estava completo. A polícia e a Justiça saberiam de onde partiu a ordem, mas não tinham como provar. Para não pas- sarem recibo de incompetência, provavelmente cumpririam o acor- dado com o delator, usando como argumento que falara a verdade. O pen drive provava que a delação era verdadeira. O resto foi des- truído, culpa de quem deixou vazar. E, de qualquer modo, teriam novas vítimas no papo, pelo menos uma nova fase da Operação es- tava garantida.
 No dia seguinte, instalado no seu hotel de costume, JB pos- tou uma mensagem-senha em Rede Social. Não demorou e rece- beu o envelope com as indicações a seguir. Encontrou o Máscara, entregou o material copiado e as contas em paraísos fiscais para o depósito dos seus honorários. Despediu-se e foi beber um uísque envelhecido 30 anos contemplando o pôr do sol na Lagoa Rodrigo de Freitas.
 Sua cabeça aos poucos excluía os detalhes da aventura recente e os substituía por lembranças de Elisa. No dia seguinte, iria para São Paulo, conforme combinado, à procura da mulher amada.
 
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