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Sumário
                                                                         Ibh esed tions acil
                                                                         euismod te ero con ulla
                                                                         umsdsdfw cbnuma




02    Ibh esed tions acil
      euismod te ero con ulla    05     Ibh esed tions acil
                                        euismod te ero con ulla
                                                                  Ibh nnnesed tions acil
                                                                  nnneumod te ero con
                                                                  ulla umsdsdfw cbnuma
                                                                                           12
      umsdsdfw cbnuma                   umsdsdfw cbnuma




                                 18     Ibh esed tions acil
                                        euismod te ero con ulla
                                        umsdsdfw cbnuma
                                                                                                   25     Ibh esed tions acil
                                                                                                          euismod te ero con ulla
                                                                                                          umsdsdfw cbnuma


                                 Ibh nnnesed tions acil
                                 nnneumod te ero con
                                 ulla umsdsdfw cbnuma
                                                          22                                       Ibh nnnesed tions acil
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                                                                                                   ulla umsdsdfw cbnuma
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nnneumod te ero con
ulla umsdsdfw cbnuma
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                                                                  ulla umsdsdfw cbnuma
                                                                                        51

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                                                                        umsdsdfw cbnuma
O garoto por trás dos doze                                             1




N
Por Arthur Pires
Foros de Chico Célio



           egro, 1,70 m de altu-       A comunidade da Vila Ca-       Ricardo, que morreu há pouco
           ra, bastante franzi-    zumba, onde Rafael nasceu,         mais de dois anos e era irmão
           no, daqueles em que     cresceu e vive até hoje, começou   de seu pai, o criou como um fil-
           as costelas saltam      a surgir entre o fim da década     ho, pois morava vizinho ao ga-
aos olhos e a magreza notória      de 70 e o início dos anos 80,      roto. Em periferias, é bastante
afunda até mesmo a maçã do         quando o Tancredo Neves, fave-     comum que famílias
rosto, Rafael (nome fictício)      la vizinha e uma das maiores de    de      irmãos
não se deixa suplantar pela sua    Fortaleza, já apresentava barra-   morem próxi-
aparente fragilidade física. O     cos apinhados, colados uns aos     mas umas
jovem P.S.F.S., iniciais da ver-   outros, que se expandiram rapi-    das outras.
dadeira identidade de Rafael,      damente para os lados de forma
aos 21 anos, já é um dos prin-     inconsequente e não planejada.
cipais vendedores de droga da      Dessa expansão do Grande Tan-
comunidade da Vila Cazumba,        credo Neves surgiram comuni-
na zona sul de Fortaleza, próxi-   dades à sua volta, como as fave-
mo à Cidade dos Funcionários.      las do Gato Morto, do Tasso, do
Como de praxe, por sua “fun-       Vila Verde e da Vila Cazumba.
ção” dentro da comunidade,             É nessa realidade que vive
Rafael tem prestígio e impõe       Rafael. O jovem é o terceiro de
respeito e medo, mesmo sem         uma família de quatro irmãos,
querer, a muitos dos mora-         criados por dona Aparecida,
dores. “Às vezes, noto que uns e   sua mãe. Perdeu o pai, seu
outros me olham meio de rabo       Abreu, ainda muito novo, aos
de olho2, com medo ou sei lá       cinco anos, mas nem por isso
o quê”, diz Rafael. E completa:    deixou de ter uma figura pater-
“Mas a maioria me trata bem,       na que o inspirasse e influísse
na limpeza3”.                      na sua escolha de vida. Seu tio,
“Ele foi mesmo que um pai:
brigava comigo, me batia, mas
me ensinou muita coisa tam-
bém”, afirma o jovem. “Eu acho
que ele gostava também muito
de mim porque só tinha filha
mulher; eu era o sobrinho que
ele mais gostava, eu acho, né!”,
completa, saudoso.
    Ricardo ‘Rolão’, como era
conhecido o tio de Rafael, foi
por muitos anos o principal
vendedor de drogas da Vila Ca-
zumba e um dos principais do
Grande Tancredo Neves. Não
queria que o sobrinho seguisse
o caminho do tráfico, mas tam-
bém não fazia esforço em es-
conder do ainda menino, e dos
outros familiares, que a ativi-
dade que sustentava a família
era o comércio de drogas. Pelo
contrário, a venda era feita a céu
aberto, na porta de casa. “Ele
era muito respeitado pelos mo-
radores aqui da Vila; não tinha
como esconder da gente que ele       elo a ser seguido. “Eu via que só   conta, “só vendia maconha, mas     dependendo de circunstâncias       tação particulares, em média,
arrepiava4, pois os caras vin-       fazendo aquilo ele sustentava       o que tava (sic) ganhando era      específicas - como o tamanho       50% a 60% dos pacientes estão
ham aqui direto pegar (drogas)”,     a família dele e ainda ajudava      muito pouco, não dava quase        da clientela e a quantidade de     internados por dependência
explica Rafael, que desde cedo,      a gente também”, explica. E foi     nada pra mim”. Os papelotes        mercadoria - a 400%, 500% do       ao crack. Nas clínicas públicas,
através do exemplo de seu tio, viu   exatamente após a morte de          de maconha, ou as ‘balas’, como    investido inicialmente: a venda    esses índices beiram os 90%.
no tráfico de drogas um caminho      ‘Rolão’, assassinado por trafi-     são comumente chamadas, são        de crack.                          Dessa forma, fica claro que para
real e perfeitamente possível de     cantes do Tancredo Neves, que       vendidos a dois reais cada, o         O crack é um subproduto         qualquer traficante que se utilize
ganhar dinheiro fácil.               Rafael decidiu entrar de vez        que gera uma receita muito         da cocaína que está completa-      da venda dessa droga, que custa
    Como na grande maioria dos       para a guerra.                      pequena para quem trafica.         mente disseminado nas perife-      cinco reais uma unidade, tem-se
casos, Rafael foi mais um garoto         Segundo ele, não foi muito      Percebendo que o lucro gerado      rias brasileiras e avança tam-     a certeza de usuários em poten-
de periferia que escolheu essa       difícil arrumar um “canal”5         com a venda de maconha não         bém, a passos largos, em direção   cial aos montes. Outro fator que
sina espelhando-se em exemp-         para comprar a droga em             estava sendo suficiente, o jovem   à classe média. Estudos e pes-     faz ser moda entre os traficantes
los próximos à sua volta. No seu     grande quantidade para, então,      decidiu começar uma empre-         quisas de diversos órgãos que      a venda do crack é que o usuário
caso, o tio, mesmo sem nunca         repassá-la. Contudo, prefere        itada mais perigosa, porém com     lidam com drogas têm mostra-       dessa droga não se contenta
tê-lo incentivado, foi um mod-       não revelar o local. No começo,     lucros que chegam, em média,       do que, nas clínicas de reabili-   com apenas uma, pois esse sub-
produto da cocaína tem efeito        plex, carro, dinheiro no banco”.    droga com a mesma naturali-         sentem inveja, relaciona-se      pelo controle do comércio de
rápido e altamente viciante. “Já        A maioria da clientela do jo-    dade de um comerciante que          bem com todos. Pelo menos no     drogas na região. Há momen-
teve dia de maluco gastar mais       vem é formada pelos próprios        vende laranja na feira. O tráfico   momento, os traficantes da co-   tos, meses até, em que impera
de mil reais só aqui comigo;         moradores, mas, segundo ele,        na favela não pára. Segundo ele,    munidade convivem num clima      o armistício, mas é preciso
outros já deixaram televisão,        os clientes mais lucrativos são     o movimento é intenso durante       respeitoso. O grande problema    apenas uma “mancada”12 de
som de carro, DVD, relógio, anel     os “playboy”8, que normal-          todo o dia, inclusive no decor-     mora ao lado. Mais especifi-     um dos lados para a batalha
de prata, cordão de prata, de        mente compram a droga em            rer da madrugada. Para Rafael,      camente, cruzando a Avenida      recomeçar a pleno vapor. Essa
ouro, um monte de coisa”, conta      grandes quantidades. Durante        o pior de vender “pedra”10 é        José Leon, que marca a divisão   disputa já ocasionou várias
Rafael.                              a entrevista, feita no local onde   ter que ficar acordado durante      entre a Vila Cazumba e o Tan-    vítimas fatais, entre elas o tio
    O jovem diz, com sinceridade     sempre “despacha”9, diver-          toda a madrugada, “hora em          credo Neves. Historicamente,     de Rafael, Ricardo ‘Rolão’, que,
e desleixo, não se incomodar         sos usuários surgiram, sem          que aparecem os bruxos”11.          os traficantes das duas comu-    como dito anteriormente, foi
por estar vendendo uma droga         cerimônia. O garoto negocia a       Por conta dessa rotina, diz         nidades vivem numa guerra        morto por traficantes do Tan-
com alto poder destrutivo ao                                             que acorda somente depois do                                         credo Neves. Fogos de artifício
usuário: “Nem penso nisso, se                                            meio-dia para “trabalhar”.                                           rasgam o céu da região quando
o cara vem até aqui pegar, é                                                O jovem, obviamente, não                                          há a morte de algum traficante,
porque ele quer; só estou fazen-                                         é o único traficante da Vila Ca-                                     seja da Vila Cazumba, seja do
do o meu adianto”6. Uma vez                                              zumba. Mas, como gosta de                                            Tancredo Neves. Os fogos são
por semana, vai até seu “canal”                                          dizer, “é o que está arrepiando                                      uma espécie de ritual que eles
e adquire uma nova remessa                                               mais na área”, orgulha-se. No                                        incorporaram a essa guerra
de crack. A quantidade varia                                             entanto, diz que os outros não                                       insana. “Já perdi uns cama-
de uma semana para outra, de-                                                                                                                 radas13, mas é isso mesmo”,
pendendo do quanto ainda tem                                                                                                                  resigna-se Rafael, num misto
disponível no estoque, mas em                                                                                                                 de frieza e tentativa de apagar
média, compra semanalmente                                                                                                                    da memória as lembranças dos
entre 40g e 50g da droga. Para                                                                                                                amigo perdidos.
clarear as ideias, 5g de crack                                                                                                                    Assim como com os tra-
são vendidos, em média, a 120                                                                                                                 ficantes do Tancredo Neves, o
reais. Quando comprada em                                                                                                                     relacionamento com a polícia
grande quantidade, esse valor                                                                                                                 é difícil. Rafael conta que a cor-
diminui para 100 reais. Portan-                                                                                                               poração sabe que o comércio de
to, o jovem Rafael, que estudou                                                                                                               drogas ocorre na favela, e por
até o 1º ano do Ensino Médio e                                                                                                                conta disso, “come o troco”14
nunca trabalhou com outra coi-                                                                                                                de muitos traficantes. Aquele
sa que não fosse o tráfico de dro-                                                                                                            que não paga o suborno aos
gas, administra, por mês, uma                                                                                                                 policias, corre seriamente o ris-
quantia que varia entre 3.200 e                                                                                                               co de ser preso e ter seu negó-
4.000 reais. Muito? Rafael solta                                                                                                              cio fechado, derrubado. “Se não
uma espontânea gargalhada, se                                                                                                                 pagar o troco aos homem15
recompõe e esclarece que não:                                                                                                                 (sic), a casa cai”16, diz o jo-
“É uma micharia7! Tem doze lá                                                                                                                 vem. Os policiais passam no dia
no Tancredo que tem é casa du-                                                                                                                combinado e saem recolhendo
os subornos; em contrapartida,      ele tem a ajudado nas despe-       vos que os fazem continuar na        bons aqui pra mim”, confessa.       que muitos dos que exercem a
fazem vistas grossas ao comér-      sas domésticas, apesar de não      atividade ilícita, pois, após con-   Sorridente, simpático e brin-       atividade ilegal do tráfico não
cio de drogas que acontece co-      morar mais com ela. Hoje, tem      seguir esse prestígio, é muito       calhão, o jovem é o contrário do    a fazem por escolha, como se
tidianamente na favela.             seu próprio barraco, que divide    difícil se desvincular dele. “As     estereótipo do traficante, aque-    fosse uma entre ser médico, jor-
    Quando indagado se também       com suas “namoradas”. Fenôme-      cumades17 só faltam pular em         le de fisionomia carrancuda, au-    nalista ou traficante, mas por
faz uso da droga que vende, se      no comum a essas comunidades       cima de mim”, orgulha-se Rafael,     toritário, violento e prepotente.   uma equação muito simples: o
surpreende e é enfático: “Tu é      é o poder de sedução que os tra-   abrindo um sorriso sarcástico e      A atividade que exerce ainda        meio em que você nasce aliado
doido? Traficante que usa pe-       ficantes exercem nas garotas da    com um ar pouco modesto.             não o embruteceu tampouco           com a falta de oportunidades de
dra, tudo o que ganha vai só pra    periferia. Para elas, namorar um       Entretanto, antes de ser um      o fez perder o espírito de ga-      conhecer outro mundo, senão
alimentar o vicío”. Mas admite      traficante é sinônimo de poder,    traficante de drogas, Rafael é       roto. Durante a entrevista, fez     aquele em que nasceu. Não que
que fuma maconha e, “de vez         de status dentro da comuni-        um jovem de 21 anos e, como          várias brincadeiras com quem        Rafael seja um exemplo de vida,
em quando, no fim de semana”,       dade. Semelhante encantamen-       qualquer outro, tem seus gostos,     passava pelo local. As estatísti-   não que se Rafael tivesse nasci-
cheira cocaína. O fato gritante é   to ocorre com as crianças, que     suas vontades e seus amigos,         cas deterministas provam que        do numa família de classe média
que a maioria esmagadora dos        vêem na figura do traficante um    com quem gosta de “jogar fute-       comumente a vida no tráfico         teria um futuro promissor, mas
jovens de periferia recorre às      exemplo a ser espelhado, tendo     bol e tomar umas geladas”18.         aponta para dois caminhos: a        Rafael nos ensina, mesmo sem
drogas pela facilidade de acesso    em vista que aqueles estão sem-    Torce para o Flamengo e para o       morte ou a prisão. Rafael parece    querer, a ter sempre um sorriso
que encontram.                      pre com roupas novas e tênis de    Fortaleza. Não vai aos jogos do      não pensar muito nisso; vai le-     no rosto, espírito de jovialidade
    Rafael conta que a mãe, dona    marca, relógios caros etc. Essa    seu time porque a atividade não      vando a vida como um garoto e,      e atitude perante desafios, não
Aparecida, sabe da atividade        idolatria que se deposita sobre    o permite. “Os jogos são sempre      sem saber, como gente grande.       importa em que situação nos
dele, mas não o recrimina, pois     eles é também um dos moti-         domingo ou quarta, e aí são dias     Ele é um exemplo clássico de        encontramos.
Glossário da periferia
                        1_Doze Gíria para traficante, que
                        advém do Art.12 do Código Penal
                        brasileiro que versa sobre tráfico de
                        drogas
                        2_Olhar de rabo de olho Olhar
                        desconfiado
                        3_Tratar na limpeza Tratar bem, tra-
                        tar com educação, com respeito
                        4_Arrepiar Traficar, vender bem,
                        vender bastante
                        5_Canal Local (ou pessoa) onde os
                        traficantes compram a droga em
                        grande quantidade para revender
                        6_Adianto Serviço, trabalho
                        7_Micharia Pouco dinheiro, quantia
                        insuficiente, pequena quantidade
                        8_Playboy Jovens de classe média
                        9_Despachar Vender, negociar
                        10_Pedra Crack, tem essa gíria porque
                        é vendida em pedrinhas envoltas em
                        sacos plásticos
“Rafael nos ensina,     11_Bruxos Viciados crônicos, geral-
mesmo sem querer,       mente os mais impulsivos pela droga
a ter sempre um         12_Mancada Vacilo, erro
sorriso no rosto, es-   13_Camaradas Amigos, parceiros
pírito de jovialidade
e atitude perante       14_Comer o troco Subornar
desafios, não impor-    15_Homem Policial
ta em que situação      16_A casa cair Ter seu negócio fecha-
nos encontramos”        do e/ou ir para a prisão
                        17_Cumade Mulher, garota
                        18_Gelada cerveja
Histórias de Beco
quando a poeira assenta, entrevemos rostos,
            punhos e corações




               Reportagem e ilustrações por May Araújo
e a grande maioria: confecções     costureira, destinada a cruzar
                                    em jeans e as chamadas “mod-       tantas vezes, anos depois, o co-
                                    inhas”, blusas, saias e vestidos   mércio erguido sobre o terreno
                                    em malha fria ou radiosa.          negociado àquele dia.
                                        Não recordo a primeira vez         A tarde fortalezense é
                                    em que estive no Beco. Provavel-   quente e abafada. Os meses ini-
                                    mente me deveria guiar o pun-      ciais do ano trazem as chuvas
                                    ho seguro de minha mãe, apres-     de São José e, por isso, o bafo
                                    sada, cruzando as vielas de        morno e impróprio do asfalto
                                    tecidos; meus olhinhos infantis    entope-me as narinas. Compro
                                    decerto turvos da correria e de    um lanche qualquer no Shop-
    Pesquisava a relação entre      obstáculos inúmeros: roupas,       ping Metrô e cruzo a rua,
programas policiais, ditos pop-     calçados, pessoas. Barulho,        intrigante comparar o
ularescos, e seus espectadores      multidão, cores rompendo o         quarteirão do shopping
que se reúnem despretensiosa-       gris bolorento dos boxes e um      com as fotografias da
mente ao redor de tvs em bares      único norte: a destra materna.     hemeroteca: eram meados
quando, tão aleatoriamente              O Beco como é conhecido        dos anos 80 quando ali hab-
quanto eles, fui levada a revisi-   hoje nasceu junto comigo. Não a    itava As Brasileiras. Enquanto
tar, com olhos de pesquisadora,     estrutura, inaugurada em 1991,     Hebe Camargo estrelava, sorri-
o espaço que sempre cruzei          mas a idéia, a decisão primeira:   dente, os cartazes publicitários
desde menina: o Beco da Poe-        à tarde do dia 4 de novembro de    da grande loja de departamen-
ira. Adentrei-o e ali me quis es-   1987, na sede do Banco do Nor-     tos, o verdadeiro beco subsis-
tabelecer. Mudei de tema.           deste, a prefeita em exercício,    tia do outro lado da rua, a con-
    O Centro Comercial de           Maria Luiza Fontenele, se reunia   tradição estampada, barracos
Pequenos Negócios ou Centro         com sua equipe e acertava a re-    de madeira e alvenaria forma-
de Pequenos Negócios de Ven-        forma do terreno à época con-      vam becos estreitos, abrigos de
das Ambulantes, chama-se, na        hecido por beco da poeira para     15 famílias e sustento de out-
verdade, Beco da Poeira, situa-     receber o “feirão popular”, ain-
do entre as praças da Lagoinha      da de frutas e verduras. Horas
e José de Alencar, no centro        depois, na madrugada daquele
de Fortaleza. Um dos maiores,       mesmo dia, eu nasci – Mayara
senão o maior centro de comér-      Carolinne Beserra de Araújo,
cio popular do Estado. As três      filha de funcionário público e
grandes tendas em ferro e ami-
anto abrigam em torno de 2.050
boxes, organizados em 22 es-
treitas galerias, subdividas por
gêneros comercializados: fru-
tas e verduras, eletrônicos, mi-
udezas e importados, calçados
prefeita
senhora
esse mes a senhora                                         vai        pagar
ros 52 “locatários”: desem-       pessoas tornam-se não mais     modo, mas não se pode ig-
pregados donos de biroscas        que vultos e as conversas,     norar isso. Como gosto de ver
imundas; cafetinas, gigolôs,      fórmulas repetidas – Quanto    o jornalismo? Eu vou dizer:
prostitutas velhas e muito        custa? Que cores tem? Que      jornalismo, para mim, é a arte
novas; vendedores de lanche,      tamanhos? Tem desconto?        de fazer amigos. Os teóricos
frutas, verduras e carnes, cu-    Qualquer     comportamento     já diziam como é preciosa e
jos restos – vísceras, bagaços,   que fuja a essa dinâmica é     tênue a relação que criamos
miúdos – tomavam o chão           encarado com estranheza.       com as fontes, repare: chego
das vielas. Uma latrina em        Minha presença inquisidora,    em um lugar, apresento-me,
forma de tosco labirinto a céu    curiosa e relaxada é quase     digo ser de uma empresa
aberto. O beco da poeira era o    ofensiva. Isso era o que eu    jornalística ou de alguma
lar dos excluídos, dos descui-    pensava antes de conhecer      universidade de comunica-
distas, bêbados, putas. Sob a     os meus primeiros amigos de    ção, digo que vou fazer uma
névoa da poeira habitavam         Beco.                          reportagem e o entrevistado
os esquecidos.                       Só quem escreve assim,      diz-me, às vezes, muito mais
   Às duas horas de uma tar-      em primeira pessoa, sabe o     do que preciso saber sobre
de quente em que há pouco         que é submeter-se a esses      sua vida. Baseado em que?
chovera entrar no Beco re-        relatos. Mas quem nunca es-    Um crachá? Uma promessa
quer antes certo preparo psi-     creveu? Diários, cartas de     de reportagem? Que louca
cológico para a experiência       amor, quem nunca contou        é essa relação de extrema
sensorial de uma brusca mu-       um segredo? Falar sozinho      confiança entre estranhos e
dança de ambiente, é quase        é tão mais fácil por que até   que maravilhosa ao mesmo
como ser trancado em um           nosso idioma - honesto - ex-   tempo, sobretudo quando
fosso, um calabouço de teto       plica que dizer é sinônimo     ao final de uma conversa de,
rebaixado, quente e úmido.        de afirmar e então quando se   sabe-se lá, 15, 20 minutos,
Se o espaço urbano por si         diz algo, para alguém ou um    fazemos amigos. Por que eu
só possui tempo e espaço          papel que seja, é como con-    faço jornalismo? Por paixão
diferenciados, no Beco, am-       firmar, tornar tudo verdade.   a essa bendita sensação de
bos sobrem nova subversão:        Dói e amedronta expor assim    fazer amigos pela confiança,
há outra correria, outros         sentimentos meus e de out-     pela honestidade, ainda que
modos, o tempo passa mais         ras pessoas, mas é para isso   concom           itantemente
depressa, a passada aperta        que os jornalistas estão no    não saiba quase nada sobre
e os olhos correm vertigi-        mundo, não? Para expor. Não    este novo conhecido; por
nosos. É dessa forma que as       gosto de ver as coisas deste   poder chegar às fontes não
como certos jornalistinhas        entes convivendo embaixo
que agem como se as pessoas       daquele amontoado de ami-
tivessem a obrigação de lhes      anto. Deixe-me começar do
ceder informações, mas com        começo: estava seguindo
uma tranqüilidade curiosa de      duas atendentes de plano de
quem quer, quando possível,       saúde que entravam no Beco
ainda que brega, parodiar         conversando sobre namora-
Roberto Carlos e perguntar:       dos, vizinhas, coisas quais-
“Como vai você?” Se o fíga-       quer. Interessei-me pela con-
do de alguns jornalistas não      versa e logo estava em um
fosse todos os dias comido        corredor ainda desconhe-
pelo tempo, feito Prometeu ,      cido pra mim, era a principio
conheço muitos que adorari-       estreito e depois mais largo,
am pôr isto em prática.           com uma lanchonete, cadei-
   Voltando aos meus ami-         ras e mesas ao fundo. Pensei:
gos de Beco, estes me mostr-      “perfeito para desenhar, não
aram quão grande é aquele         precisarei tomar o lugar de
lugar sem que eu precisasse       ninguém e vou poder agir
caminhar pelos corredores,        discretamente”. Sentei-me,
levaram-me a pensar como          retirei lápis e borrão e me
são tantas pessoas difer-         pus a observar o cenário. À


Sob a nevoa da                 poeira,
   a    multidao de sombras se mexe
esquerda, duas vendedoras          a vendedora absorta quando      nada, não havia o que temer     bros. Todas as vezes que fazia     senho que você fez?”
conversavam, uma delas ol-         as coisas começaram a mudar:    e estava ansiosa para saber     este trajeto, voltava ao box com      Estava desmoronada a mu-
hava o chão absorta, sentada       notei uma certa movimenta-      como acabaria aquilo, quando    uma novidade, em pouco tem-        ralha do silêncio, da impessoal-
em uma das pernas, trazia a        ção curiosa em torno de mim,    percebessem que os estava re-   po os relojoeiros já também        idade e, a partir dali, decantara
bolsa à tira-colo, onde pudesse    os vendedores cochichavam       produzindo.                     me olhavam curiosos, todos         a poeira do Beco: os rostos não
ver; mais à frente, mais duas      entre si e me olhavam descon-      Aconteceu logo, em cerca     sabiam o que se passava, mas       eram mais vultos, mas pessoas,
vendedoras conversavam; à          fiados. Não demorou para que    de quinze minutos, uma das      ninguém dizia nada, até que a      com suas histórias, tempera-
direita, um vendedor loiro ol-     eu entendesse: estavam com      moças levantou-se várias vez-   mesma vendedora levantou-se        mentos, humores, e quanto
hava o movimento e à frente        medo de eu estar desenhando     es, caminhava para além da      uma última vez, olhou-me por       humor! Logo fui incluída, ver-
três moços concentrados, con-      os modelos de suas roupas.      minha cadeira e me olhava,      cima dos meus ombros e per-        dadeira algazarra em torno
sertavam relógios. Rabiscava       Decidi simplesmente não fazer   eu a percebia sobre meus om-    guntou: “posso ver o outro de-     dos desenhos, todos querendo
se reconhecer: “ah, mas eu não          obter algumas repostas caiu        do e, àquele dia, um gravador.
  sou feio assim!”, disse irmão           por terra, foi nocauteado pela     Com a espessa poeira da es-
  Toninho, “olha que essa aqui é          brincadeira dos rabiscos, e logo   tranheza decantada, surgiram
  fulana!”, “esse é ciclano!”... E me     lá estava eu entrevistando e       rostos. Descobri que estava
  mostraram o desenho da Paiz-            sendo entrevistada: o que você     no corredor dos evangélicos
  inha colado no alto da coluna.          faz? De onde é? Você compra        e que ali, naquela vizinhança,
  Uma boneca de longos cabelos,           no Beco? E ainda me quiseram       eram todos amigos há três ou
  desenhada a lápis e com os diz-         pagar pelo desenho: R$ 2,00!       cinco anos. Rita de Cássia é a
  eres: “Procura-se viva ou mor-          Recusei, óbvio. Tão mais val-      mais nova, tem 18 anos, tra-
  ta, recompensa R$ 0,50”. Ah,            iosa fora aquela experiência.      balha pela manhã até a tarde
  mas estava errado uma boneca                Dias depois retornei para,     e estuda à noite, prestará ves-
  tão feia, “Manda chamar a Paiz-         de fato, escrever minha report-    tibular para Serviço Social. Rita
  inha que a menina desenhista            agem. E eu que me dizia, com       foi a primeira que se dispôs a
  vai ter que desenhar ela!” Man-         ares de pesquisadora: “vou         falar. “Desenrolada”, a pequena
  daram chamar Maria da Paz.              apreender as performances          contou-me que está ali há três
  Enquanto desenhava a moça               dos vendedores”, conclui que       anos, cuidando do Box da mãe.
  dos longos cabelos loiros e cac-        só uma pessoa foi performer        Os primeiros dias de vendedo-
  heados, de repente, aquele es-          ali: eu mesma. Se havia alguma     ra do Beco foram um tanto difí-
  forço a que nós jornalistas nos         intervenção, era minha, com        ceis, era tímida, envergonhada
  submetemos certas vezes para            um lápis, um borrão amarela-       e, como Rita mesmo diz, para



  A    vendedora          absorta,  ia

     mas       a bolsa do dinheiro,                                       essa trazia        presa ao corpo
trabalhar ali é preciso “swing”,        se sentem seguros no Beco,         além das taxas de manuten-          os inseparáveis de um Beco es-     queríamos ser reconhecidos,
molejo. Hoje fez amigos, de-            os malandros da praça volta e      ção quitadas mensalmente,           quecido pelas autoridades.         entende?”, disse-me João Pau-
clara que aquela é a parte mais         meia estão por lá, mas pouco se    os vendedores se submetem               Ainda que o Beco da Poe-       lo, o Loiro, questionando-me
divertida do Beco, gosta do que         escuta de furtos. Quem assusta     a péssimas condições de tra-        ira seja um diferencial da capi-   quantas vezes eu tinha visto
faz e prefere estar ali a vender        mesmo é o “rapa” em busca de       balho. A estrutura é precária, já   tal cearense (tanto que certos     alguma propaganda do Beco
em feiras livres, onde se sen-          CDs piratas.                       diversas vezes condenada pela       turistas chegam a pagar guias      da Poeira na televisão. Jamais,
tia insegura e o trabalho era              Mas nem tudo são flores, se     vigilância sanitária. Em tem-       para visitá-lo nos meses de ja-    Loiro, eu mesma nunca vi. E
mais pesado. Quanto à segu-             o Beco hoje representa oportu-     pos de chuva como os de agora,      neiro e julho), os permission-     apesar disso, como ele mesmo
rança, não só Rita como os out-         nidade para centenas de per-       a água imunda dos banheiros         ários reclamam que não há          disse, possivelmente mais da
ros vendedores que estavam              missionários, o preço que se       volta pelos ralos. Fedentina,       nenhum tipo de divulgação por      metade das lojas de confecção
por perto confirmaram que               paga por ela não é barato: para    calor e sujeira são companheir-     parte da prefeitura. “Nós só       de shoppins da região Norte
são abastecidas com roupas “made in”        rando e saindo de suas galerias, vendil-   a vida a todo custo. Os vendedores ca-    mercadoria e recebia em troca, muitas
Beco da Poeira. A verdade é que ali         hões que alimentam o comercio infor-       dastrados do Beco não divergem dos        vezes, desprezo. Ali o “não” é comum,
se lucra por quantidade e os maiores        mal e, por meio dele, dão de comer a si    informais da praça, aproximam-se,         mas não frustra os vendedores, a con-
compradores descem aos montes na            mesmos e a suas famílias. O Beco, saído    oferecem, insistem, “chegam junto” do     corrência mora ao lado e por isso a ne-
rodoviária fortalezense e têm outros        das entranhas da diversidade de uma        freguês, cada passante é um potencial     cessidade de manter certa disposição
sotaques.                                   praça pulsante e viva como sempre fora     consumidor. Loiro é um dos que con-       constante, apesar do cansaço, e o mais
    João Paulo de Souza, o Loirinho, tem    a José de Alencar – que se reinventa e     firma a tese, contou-me que, em seu       importante, como disse Rita de Cássia,
23 anos e deixou o trabalho na roça, em     repovoa, apesar das tentativas higieni-    primeiro dia de trabalho, acostumado      manter o jogo de cintura. Se não há pro-
Morrinhos (município a 208 quilômet-        stas das gestões municipais de varrer      com a vida difícil de ambulante, chegou   vador, com dois panos, faz-se uma cor-
ros da capital), sua cidade natal, pra      “vagabundos” e ambulantes –, herdou        “arrepiando”: chamava o cliente, anun-    tina; se não cabe, aperta; se a perna da
tentar a vida em Fortaleza. Foi camelô      dela a avidez de quem precisa ganhar       ciava os produtos no gogó, oferecia a     calça é grande, uma dobra, um ponto e
na Washington Soares e outras aveni-
das da cidade, vendia calculadoras, con-
troles remotos, mas a vida de ambulan-
te também não rendia. Loiro já pensava
                                             menina             Rita:                   pra vender no             Beco,           tem de ter
em voltar pra roça quando um primo,
fabricante de confecções, convidou-lhe
                                                                                                                                     jogo de cintura
para trabalhar no Beco. Atualmente,
João cuida do Box do primo há 5 anos
e afirma – com segurança – que se lhe                                                                                            tudo está resolvido. O Beco da Poeira é
oferecessem um emprego na Otoch ou                                                                                               o mercado do “jeitinho brasileiro”, con-
na C&A em pleno Iguatemi, recusaria                                                                                              stituído não só pelos permissionários,
prontamente.                                                                                                                     mas por marmiteiros, tapioqueiros,
    Muitas histórias se entrecruzam, tan-                                                                                        cafezeiras – nome popularmente dado
to quanto os corredores do complexo, a                                                                                           às mulheres vendedoras de cafezinho
vizinhança, os grupos a cada corredor                                                                                            -, malandros, catadores, artistas. Nessa
fazem da grande feira uma Fortaleza                                                                                              dinâmica, entre as galerias, além dos
em proporção menor, com bairros, ruas,                                                                                           visitantes, dezenas de isopores, tab-
esquinas, quarteirões, casas e vizinhos.                                                                                         uleiros e até bicicletas desafiam a estre-
No Beco, há engarrafamento, polícia,                                                                                             iteza dos caminhos, ganhando a vida à
prefeito, ele consiste, portanto, em mais                                                                                        custa do ganha-pão de outros tantos.
um núcleo organizado dentro da cidade                                                                                                Essa é a vida de Francisco Antonio
que absorveu dela suas característi-                                                                                             da Silva, 22 anos, mais conhecido como
cas. E assim como em uma cidade, não                                                                                             Pastel-menino. Francisco recebeu esse
vivem do Beco somente os permission-                                                                                             apelido do oficio de vendedor de pas-
ários, mas outros tantos, que ao redor                                                                                           tel e suco, ele percorre aquelas galerias
da dinâmica da feira inauguram outro                                                                                             há 5 anos, oferecendo pastel e espe-
movimento, são dezenas de ambulantes                                                                                             rando ansioso alguém gritar “Pastel,
às portas do Centro Comercial, ou ent-                                                                                           menino!”, indicação de mais um cliente
                                                                                                                                 garantido. Pastel-menino mora na Praia
do Futuro, acorda 5 e meia da manhã e       voamento, a não ser que as pessoas que       do o novo Beco da Poeira.
deixa o serviço às 5, 6 da tarde, quando    as habitam hoje não sejam considera-         A esperança virou decep-
o Beco fecha as portas. Ao contrário do     das dignas, merecedoras, de estar ali.       ção: meses depois, a obra
que, em geral, se pensa, Francisco não é    Fica a pergunta: quem, afinal, os ge-        foi embargada e o din-
autônomo nem tem a liberdade de en-         stores municipais querem ver povoar          heiro, milhões aliás, desa-
trar e aproveitar o movimento do Beco       as praças do Centro?                         pareceu.
como bem entenda, ele é contratado              Fundado em 1991, na gestão do pre-          Agora os jornais anun-
para vender os pasteis e, para que ele      feito Juracy Magalhães, o Centro Com-        ciam: “De zero a 10 está
possa caminhar pelos corredores, seu        ercial de Pequenos Negócios fora antes       em nível 8 o fechamento
patrão paga mensalmente uma certa           um projeto do programa de revitaliza-        da aquisição da antiga te-
quantia ao sindicato, Pastel-menino



Loro de Morrinhos :
 voce ja viu propaganda do Beco na TV?
não sabe quanto.                            ção do centro, iniciado por Maria Luiza      celagem Tomaz Pompeu,
    Manter em ordem a venda ambu-           Fontenele. Atualmente, na gestão da          na avenida do Impera-
lante, contudo, não é uma novidade do       prefeita Luizianne Lins, mais uma ten-       dor, para ser a futura
sindicato. Na verdade, a reorganização      tativa é feita, desta vez motivada pela      sede do atual mercado
do centro de Fortaleza, ou revitalização,   construção da Estação Lagoinha do            do Beco da Poeira” . No-
foi meta de vários gestores fortalezens-    Metrofor – projeto de metrô de Fortale-      vamente, expectativa e
es. Chega a ser engraçada a contradição     za -, cuja sede será onde hoje está situa-   desconfiança, esperança
de batizar como revitalização o ato de      do o Beco da Poeira. Segundo prefeitura      e descrença mesclam-se
expulsar ambulantes do centro. Perce-       e governo do Estado até o fim deste ano      entre os permissionári-
ba: revitalizar não é restaurar, repor a    a obra necessita estar pronta, gerando       os. A tecelagem, avaliada
vida? E quem disse que as praças estão      novos sentimentos de apreensão e ex-         em 7,4 milhões de reais,
desabitadas, vazias? A praça ferve do       pectativas nos permissionários do Cen-       dispõe de muito mais es-
movimento de passantes, que param           tro Comercial, que se preparam, depois       paço do que o “esquele-
em círculo para ver os artistas ganha-      de 18 anos no mesmo estabelecimento,         to” erguido em 2004,
rem a vida com malabares, cantorias e       para uma provável mudança definitiva.        que atualmente, para
palhaçadas. Seus bancos estão reple-           Pouco antes, em 2004, esta apreen-        receber o Beco da Poeira
tos de pessoas, desde consumidores          são e expectativa de mudança fora            necessitaria do terreno
do centro, cansados da caminhada, até       plantada uma primeira vez no seio dos        de mais 10 a 13 imóveis
desempregados, ambulantes, boêmios          vendedores. Um terreno fora comprado         do entorno, segundo José
e prostitutas. As praças do centro não      num acordo entre prefeitura, sindicato       Nunes Passos, secretário
estão vazias para precisarem de repo-       e construtora para que fosse inaugura-
do Centro. A mudança para a Aveni-      ou sem Beco, continuará vendendo
da do Imperador gera especulações,      seu pastel, já que no Centro não fal-
os vendedores questionam se será,       ta freguesia, mas sente por outros
de fato, amplo e organizado como        vendedores que não trabalham no
prometem. “Vai ter ar-condicionado,     mesmo “esquema” que ele. “A gente
praça de alimentação...”, comentou      não sabe se eles vão deixar o pessoal
Loiro, empolgado, seguido de um         andar lá dentro, nem se vão poder
“Menos, Loiro, menos!”, do irmão        colocar barraca do lado de fora, vai
Toninho. Mas o que os permission-       que tem lanchonete lá dentro aí a
ários reivindicam não passa de          gente fica sem saber como fazer...”,
condições melhores de trabalho:         admite Francisco.
boa instalação elétrica, espaço mais       A tarde cai tão rápido quanto
amplo entre os boxes, um sistema de     chega. Será que, na tecelagem fecha-
ventilação adequado, banheiros dig-     da, será possível distinguir o dia da
nos. Quanto aos ambulantes do Beco,     noite, como debaixo dessas tendas?
como Pastel-menino, a situação é um     É hora de despedir-me com uma úl-
tanto mais preocupante, já que eles     tima pergunta: o que levam desse
não sabem se, em uma nova estru-        lugar, caso realmente se mudem? Do
tura, inaugurada como exemplo da        que terão saudades? Rita se adianta
eficiência da aliança prefeitura-gov-   e diz “De nada, não tenho apego por
erno do Estado, haverá a possibili-     esse lugar.”, mas concorda, aliás, to-
dade de ambulantes circulando nas       dos concordam, de certa forma, com
galerias novinhas. Francisco está um    a resposta de Loiro: “Vou sentir falta
pouco mais tranqüilo por que, com       dos meus amigos, por que lá a escol-
ha dos boxes vai ser por sorteio,    E me vou embora, às 17:40 da
então não sei se a gente vai ficar   tarde quente e abafada, cru-
junto, é muito difícil. Os meninos   zando as vielas de verdadeiros
aqui já são meus amigos dentro       contabilistas a calcular os lucros
e fora do Beco, a gente é tudo       e a recontar estoques no fim de
evangélico, então vai pra igreja     mais um dia de batalha, alguns
junto, sai junto e lá eu não sei     fecham as malas para guardá-
como vai ser a nova vizinhança.”     las nos boxes minúsculos, out-
    Quando penso que irmão           ros para levá-las à praça da Sé
Toninho, Loiro, Rita de Cássia,      e lá enfrentar a feira livre que
Paizinha, Pastel-menino, e out-      já já começa e vira a noite até
ros tantos, carinhosos e acolhe-     o raiar de um novo dia, em que
dores, não são sequer um décimo      todas aquelas pessoas, histórias
da população da grande feira, re-    de vida, se reúnem novamente.
spiro fundo e entrevejo na poe-      Deixo o Beco com a sensação de
ira um caminho longo de outros       acompanhar uma história em
vultos que se tornarão rostos,       marcha, mas, desta vez, não na
pessoas, punhos firmes como os       margem, mas completamente
de minha mãe, a me guiar por         imersa no rio da vida. E vou-me
aquelas galerias, em encontros       feliz, plena de imagens, relatos,
sucessivos de histórias de vida.     grávida de tudo.
O
Pre
núncio
Conto
da Casa do
Português
Por Emanuele Sales
Fotos de Chico Célio
N
          o dia em que foi        marido fora encontrado ar-        à direita, encarando a vidra-
          embora para sem-        quejando sua última angús-        ça. Antonio fizera questão de
          pre da casa, Violeta    tia era onde Violeta Sanches      mandar construir sete arcos
          Sanches acordou         dormia todas as noites desde      em ambas as laterais e três
cedo, como era de costume,        que entrara na casa, e o espe-    defronte, em cada pavimento
e apressou-se em verificar        lho do toucador, presente da      – dizia que seriam para cada
a caixa de correspondência.       sogra, estava no mesmo lugar      um dos sete filhos que viriam
Bateu com o sino na grade da      há treze anos, como tudo lá       ao mundo. Mesmo sem ol-
cama quatro vezes; como a         estava. Por isso, não era de      har pra eles, Violeta Sanches
criada não acudisse, resolveu     se espantar que a vizinhança      os via todas as manhãs, ao
descer sozinha ao jardim. Era     chamasse o imponente e sin-       acordar.
a segunda vez em treze anos       gular casarão de “a casa mal          Chamava-se Alísio o filho,
que lhe ocorria levantar-se da    assombrada”. Mas Violeta          tinha o nome do bisavô por-
cama, fazer a toalete e sair da   Sanches preferia associá-lo       tuguês. Contava três anos
casa sem que os empregados        a uma espécie de memorial,        de idade quando Antonio
ou o marido estivessem por        um tributo ao que se passou:      o trouxera à casa, embora
perto. A primeira havia sido      ela e o marido recém casa-        as freiras do orfanato não
um mês depois do acidente,        dos; ela entrevada na cadeira     soubessem ao certo a data do
e ela nunca mais a esqueceu,      de rodas entrando na casa         nascimento. Era um rapaz de
embora julgasse o contrário:      pela primeira vez, subindo de     feições indecisas a andar pe-
caíra da cama como se fosse       carro a enorme rampa; os fil-     los jardins, sempre com um
uma criança de mãe descui-        hos que nunca teriam; o filho     livro na mão. Àquela época
dada, tombara de bruços           que tiveram e perderam.           pendia-lhe um buçozinho
amolecendo um dente. O dia            Do lugar de onde vis-         que o pai insistia em chamar
estava claro, havia um vento      lumbrava o amanhecer, não         de bigode. Gostava de es-
seco adentrando os cômodos,       chegava a confrontar os raios     crever cartas, mas ninguém
diferente da aragem úmida         solares, antes os entrevia tol-   conseguira descobrir quem
que percorre toda cidade li-      dados pela gaze das cortinas      era o destinatário. “Nosso
torânea. Ela mesma pensava        e impelidos pelo concreto dos     filho já é homem”, Antonio
que algo estranho acontecia,      arcos. Os arcos da varanda,       segredou a Violeta Sanches,
a começar pela lembrança do       estes sim, eram a primeira        um dia em que entrara no
acidente. Havia tempo Vio-        visão de cada dia. Adorme-        quarto de Alísio sem bater à
leta Sanches não pensava no       cia olhando para o teto, como     porta. Levantava cedo e ia a
passado, achava que tivesse       se ali houvesse um enigma,        escola, ao retornar almoçava
enterrado as lembranças           o talhe reto, e nessa posição     e permanecia nos jardins ou
com o marido morto, mas,          despertava, nunca inclinava       na varanda até o anoitecer.
agora quando aconteceria o        a cabeça. A janela do quarto      Não saía de casa sem que es-
improvável, ela se detinha.       dava para a confluência entre     tivesse sozinho, não se tinha
   O quarto não mudara            dois dos sete arcos da varan-     notícias de amizades suas. O
em nada depois que Anto-          da lateral, de modo que só        pai oferecia-lhe carona até
nio morrera. A cama onde o        eram vistos por quem virasse      o colégio, mas ele recusava
enquanto podia: “São só alguns   começo, tinha compaixão do           deixando as pessoas que vivem      ensaiada. Evitariam encontros
passos”.                         menino de olhos atentos, sem         juntas parecidas, mas pela ma-     casuais no mundo que era a
   Violeta Sanches esforçou-se   família nem passado. Depois,         neira como a olhava. Houve um      casa.
para amá-lo como se tivesse      nos primórdios da adolescên-         tempo em que até mesmo a pre-         Uma tarde, enquanto as
nascido dela, como Antonio o     cia, Alísio cada vez mais lhe fig-   sença dele à mesa gerava-lhe       criadas ajudavam-na durante
amava. A bem da verdade, o       urava um estranho, não por ele       incômodo. Foi então que, num       o banho, ouviu alguém camin-
sentimento era recíproco, mãe    ser totalmente imune às mar-         acordo tácito, ambos passaram      har no quarto. Tinha a audição
e filho o compreendiam. No       cas da convivência, que acaba        do esforço cínico à displicência   bastante apurada, percebia a




                                                       mínima intensidade de um som,           inabilmente e girou a maçaneta. As          No dia seguinte, enquanto toma-
                                                       fosse numa conversa barrada por         moças que a banhavam soltaram um         va ar defronte à entrada principal,
                                                       paredes, fosse numa nota musical        grito de horror ao ver Alísio de pé,     Violeta Sanches escutou novamente
                                                       destoante. Pensou que Antonio es-       no limiar. Violeta Sanches apenas o      os passos da tarde anterior, des-
                                                       tivesse no quarto, mas lembrou-se       encarou, enxergando nele um sem-         sa vez vinham de cima. Olhou em
                                                       de que o marido havia ido ao ar-        blante de serenidade. Pediu às em-       direção ao céu e viu Alísio sobre o
                                                       mazém fazia pouco tempo. Os pas-        pregadas que jamais comentassem          teto jardim. “Ele não deveria estar
                                                       sos aproximavam-se da porta, não        o episódio. À noite, durante o jantar,   na escola?” – pensou sem tirar os
                                                       era Antonio, ela estendeu o braço       Alísio não sentou-se à mesa.             olhos do rapaz. Depois, não pensou
em mais nada, revelou para si que    estava apenas escondida.              – um mau agouro. Tudo na casa
aquela só podia ser a imagem de         Ao cabo de cinco minutos,          recendia ao que vivera e o que
um anjo. Cartas de amor espalha-     que para Violeta Sanches signifi-     estava ainda por ser vivido, mas
vam-se sobre o terreno, levadas      caram mais de dez anos, a criada      fora abortado. Nesse instante a
pelo vento, pareciam brotar dos      atendeu-lhe o chamado. “Leve-         verdade tornou-se clara. Era
pés de Alísio, todas endereçadas     me até o jardim”, ordenou. “Mas       preciso romper.
a ela. “São só alguns passos, min-   assim, senhora?”, espantou-se a          Subiu a rampa com a força
ha amada” – disse ele com a voz      criada. “Imediatamente”, disse        dos próprios braços até chegar
mansa, olhando a como nunca, e       sem hesitar. Cruzou todo o pa-        ao teto jardim. Lançou um úl-
atirou-se ao chão.                   vimento de olhos fechados, só         timo olhar sobre a cidade e as
    Os meses seguintes até a morte   ousou abri-los quando estava na       pessoas, como se estivesse a
de Antonio foram para Violeta        frente da caixa de correspondên-      despedir-se do que não tinha
Sanches uma provação divina,         cia. Ali mesmo conferiu as cartas,    sido seu. Experimentou o ven-
diferentes do tempo atual. Agora,    não havia nada informando a           to quente ressecar-lhe a pele e
ela ria quando a brisa fazia cóce-   chegada dos parentes, somente         embaraçar-lhe o cabelo. Uma
gas em seu nariz, tocava piano       pacotes com revistas de moda          lágrima desceu-lhe aos lábios.
uma vez por semana e deixava-se      que a cunhada lhe mandava. Es-        De súbito, sentiu sobre si um
ficar todas as manhãs no portão, a   forço inútil, agora tinha de voltar   olhar curioso, ouviu passos
observar o movimento na avenida      e viver de novo. Virou-se e con-      que lembravam os de Antônio
que ganhava cada vez mais au-        templou a enorme construção           e uma voz doce, quase idêntica
tomóveis. Sentia-se jovem ainda;     diante de si. Aquela casa tinha       a de Alísio: “Bonjour, cunhada!
era, de fato, das que resistiam      sido feita para ela: os arcos, os     Preparada para a viagem?”.
muito ao peso dos anos. Corre-       jardins, a rampa, o destino de
spondia-se com uma irmã de An-       quem ali habitasse; desde os pi-
tonio que vivia na França em com-    lares fora planejada para uma in-
panhia do irmão caçula, e decidira   válida, antes mesmo do acidente
aceitar o convite para morar com
os dois. Combinaram a ida, ambos
viriam buscá-la. Na manhã em que
foi embora para sempre da casa,
lembrou-se exatamente de checar
o correio para saber da chegada
dos cunhados, quando a sua vida
ressurgiu, silenciosamente, pois
Adendo ao Conto O Prenúncio
    Este conto é uma narrativa     chamava José Maria Cardoso,        classe social em ascensão, tra-         É o homem de barba branca
ficcional baseada em histórias     português, negociante de ma-       duzido através da monumen-          no expresso Parangaba - Mu-
ouvidas a respeito do casarão      deira para a construção de         talidade, da estética exótica e     curipe que brada ter conhecido
na Avenida João Pessoa, nº         ferrovias no Ceará, era casado     do porte da estrutura de con-       o “bendito português”, tinham
5094. Muito se fala sobre a        e tinha um filho. A casa foi in-   creto (...) Ressalte-se a adequa-   sido até amigos na juventude!;
Casa do Português, mas pouco       augurada em treze de junho de      da implantação da residência,       é o vizinho quase centenário,
se sabe ao certo sobre a vida de   1953, com tamanho que ainda        que favorece a iluminação e         que vendeu os azulejos Kab-
quem ali morou, salvo pesqui-      hoje tem, apesar de nunca ter      ventilação dos vários ambi-         lin usados no revestimento da
sas acadêmicas e registros his-    sido ocupada por completo          entes, sobretudo nas varandas       cozinha da casa; é a moça que
toriográficos do antigo Bairro     nem mesmo pelas sete famílias      e em toda a área de lazer nos       passa em frente quase cor-
Damas, reduto de sossego na        que lá residem sob autorização     dois últimos pavimentos. Por        rendo, ao retornar da escola,
Fortaleza que crescia ao início    dos legatários.                    todos esses aspectos citados, a     temendo o prédio “mal-assom-
do século XX.                          Hoje o prédio é tombado        edificação ainda hoje constitui     brado”. Todas testemunhas de
    Para a escritura deste con-    pela Fundação de Cultura, Es-      marco visual no entorno, dis-       suas próprias histórias, docu-
to, foram levados em consider-     porte e Turismo de Fortaleza       tinguindo-se das demais.”           mentos da lembrança ou de-
ação somente dados referentes      (Funcet), sob justifica e de-           A arquitetura incomum          vaneio, cada qual com uma ex-
à estrutura da casa, ao mo-        scrição integrantes do proces-     chamou atenção dos órgãos           plicação óbvia para construção
mento em que foi construída e      so: “Edifício em bloco único,      públicos para a importância da      de uma casa tão grande para a
seus primeiros anos, ou seja, as   de forma retangular, de dimen-     casa como patrimônio mate-          família pequena do português,
décadas de 1950 e 1960. Para       sões 33m x 14m, possui quatro      rial, mas o imaginário popular      para a rampa em detrimento da
tanto, tomaram-se precauções       pavimentos e está a o nível da     faz tempo a eternizou relíquia,     escada, para os arcos que con-
durante a pesquisa. Procurou-      rua, no centro do terreno, com     daquelas que se contempla           tornam os pavimentos, para o
se não adentrar demais o ter-      afastamento de cerca de 18m        tentando adivinhar o passado.       teto jardim que coroa toda a
ritório da realidade para não      da via principal e com recuos      Não é difícil andar pelas imedi-    estrutura. São esses os aponta-
perder o mote da criação base-     laterais. É contornada pela        ações da Avenida João Pessoa        mentos trespassados pela sub-
ada em narrativas colhidas em      rampa em forma de ferradura,       e encontrar quem fale da Casa       jetividade do narrador que se
andanças pelo Damas. A quem        que tem presença marcante          do Português nomeando-se            privilegia no conto – registros
possa interessar a busca por       no conjunto e que dá acesso a      testemunha ocular da história       da memória e da imaginação
registros historiográficos, seg-   todos os pavimentos. Padrão        do imóvel – Fortaleza tem           que constituem a prova de que
uem alguns apurados de início:     diferenciado para a época, que     desses personagens mais fan-        a mente humana se apropria
o primeiro dono do prédio se       revelava os valores de uma         tásticos do que reais.              do inexplicável.
A Loucura


                          H
que margeia
Fortaleza                            ospício      glob-
                                     al. Esse termo,
                                     lançado para o
                                     mundo num dos
                       livros mais vendidos do Brasil,
                       o Vendedor de Sonhos, parece
                       representar bem a realidade em
                       que vivemos atualmente. Talvez
                       por isso, o livro com um título
                       tão inusitado esteja suscitando
Por Lívia Nunes

                       tanta curiosidade entre leitores
Fotos de Chico Célio

                       brasileiros.
                           Buscando enquadrar-se no
                       sistema, homens e mulheres es-
                       condem-se por trás de roupas
                       de grife, carros do ano, sorri-
                       sos vendidos. Mantendo a falsa
                       ilusão de serem felizes. Como
                       resultado a tanta pressão, jo-
                       gos de aparência, luta pelo
                       poder, cresce uma população
                       cheia de medos e marcada por
                       distúrbios mentais, como a de-
                       pressão, e a esquizofrenia. Sem
                       falar nos transtornos de humor
                       e ansiedade.
Como atestam os psicólo-      mentais. O que equivale a 5 mil-     para superá-los.                   pode ter um adoecimento emo-       mentais, e isso vai da classe
gos, a loucura anda junto com      hões de jovens.                         Para a psiquiatra, esses        cional”, enfatiza.                 social alta a classe social mais
a normalidade. Nos dias atuais,         Em Fortaleza, ainda não ex-     números refletem “os males da          Quanto a ligação entre po-     baixa. “Essa coisa do determin-
a linha que separa esses dois      iste uma pesquisa que demon-         vida moderna, sobre uma so-        breza e loucura, a psiquiatra      ismo é complicada (...) Não é
mundos parece estar ainda          strem esses números. Mas             ciedade competitiva, que pres-     Nara, vê a miséria como um         porque a pessoa é pobre que
mais tênue. A prova disso está     considerando os dados da Or-         siona cada vez mais o indivíduo    fator estimulador na deflagra-     ela vai ter o transtorno. Precisa
nas ruas, nas praças, nos becos,   ganização Mundial da Saúde           a ser o melhor”. Outro fator que   ção de distúrbios mentais. “A      de uma série de fatores. Tem
nas calçadas ou escondidos em      que afirma que cerca de 3% da        explica o aumento dos casos de     pessoa pode ter uma vulnera-       morador de rua que não tem
quartos escuros.                   população, em qualquer lugar         transtornos mentais é o fato       bilidade específica, que quan-     o transtorno mental. O que vai
   Andar nas ruas de Fortaleza     do mundo, está sujeita a de-         das pessoas estarem mais aten-     do influenciada por um fator       determinar isso é a estrutura
– no centro da cidade em es-       senvolver transtornos mentais.       tas à divulgação das informa-      estressor importante permite       de cada um”, destaca.
pecial – nos dá uma dimensão       Podemos estimar que existam          ções pela mídia e ao progresso     que os sintomas se desenvol-          Contudo, estima-se que
dessa realidade. Esbarrar com      cerca de 750 mil pessoas em          da psiquiatria nos últimos anos.   vam”, observa. A miséria é         as doenças psiquiátricas têm
“loucos” já não é uma cena in-     Fortaleza propensas a desen-         “Encontra-se mais porque sim-      uma delas! Já para uma das co-     grande chance de se desen-
usitada. Os números confir-        volverem algum transtorno            plesmente procura-se mais”,        ordenadoras da Rede de Saúde       volver na pobreza, onde va-
mam essa tendência mundial         mental.                              destaca.                           Mental de Fortaleza, a psicóloga   lores humanos são esquecidos
a doenças mentais. Estima-se           Segundo a psiquiatra Nara           Já a psicóloga e coordena-      Raimunda Felix, as pessoas po-     e massacrados pela dor, fome e
que 15% da população mun-          Fabíola Costa de Brito, os dis-      dora do Caps xxx, Daniela xxxx,    dem enlouquecer em qualquer        rejeição. “Nenhum antidepres-
dial (975 milhões de pessoas)      túrbios mais encontrados em          acredita que esse aumento é        classe. “O determinante social     sivo vai aliviar a dor de não ter
precisem de atendimento em         Fortaleza são depressão e tr-        em resposta a um grande vazio      tem uma influencia, mas não é a    o que comer, o que vestir, de
saúde mental. No Brasil, 28,3%     anstornos de ansiedade em            existencial, que possibilita que   causa. Não pode ser vista como     viver inseguro, com medo da
milhões sofrem de algum tran-      geral. “O transtorno depressivo      essas crises eclodam. “Eu ficar    a causa primeira”, rebate.         violência urbana (...). A questão
storno mental, conforme dados      é muito comum e a prevalên-          falando apenas de crise exis-          Já a coordenadora do Caps      é puramente social e não de
do Ministério da Saúde.            cia estimada durante a vida é        tencial é um pouco burguês         acredita que a história de vida,            saúde pública”, critica
   Um dado preocupante é o         de 15%. O transtorno afetivo         demais, porque nós temos out-      o histórico familiar, o contex-                 Nara.
número de jovens que apre-         bipolar tipo I é estimado em         ras questões também, como a        to em que se vive pode                                  Para Dan-
sentam sintomas de doenças         1%, semelhante às taxas para         pobreza, a falta de freios. Mas    propiciar ou não                                          iela xxx,
mentais. De acordo com pes-        esquizofrenia”, informa. Outro       nada disso é determinante soz-     a eclosão de                                                   essa
quisa realizada pela Associa-      distúrbio com grande incidên-        inho. Temos que considerar a       doenças
ção Brasileira de Psiquiatria,     cia são as fobias, entretanto, por   historia da pessoa, como ela
estima-se que existam, aproxi-     desconhecerem os sintomas, os        viveu, como ela se estruturou,
madamente, 12,6% brasileiros,      indivíduos portadores desse tr-      para ver se ela vai ter um surto
entre 6 e 17 anos, com doenças     anstorno não procuram auxílio        ou não. Qualquer um de nós
realidade de dor e medo é vi-       abandono em que se encon-              Segundo dados fornecidos         amento. “A gente trabalha com
venciada no cotidiano dos Caps,     tram as pessoas com transtor- pelo Relatório, ao longo de               o que o território apresenta
aonde, diariamente, chegam          nos mentais. A contratação de 2008, a SMS fez um investimen-            de potencialidades”, ressalta
várias pessoas - trazidas por       equipes de saúde mental, a es- to financeiro de R$ 8.380.775,59         Raimunda Felix.
amigos, familiares ou vizinhos      truturação dos serviços, a qual- com a Rede Assistencial de                 Apesar dos avanços perce-
-, buscando ajuda após tentar o     ificação profissional, o incentivo Saúde Mental. Dos quais, R$          bidos no tratamento de doen-
suicídio.                           ao controle social e a discussão, o 1.926.401,79 foram destinados       ças mentais, há muito a ser
    Desmistificando a idéia de      planejamento e avaliação do pro- a parcerias com instituições           feito. Como atesta o Relatório é
que a pessoa com distúrbio          cesso de implantação da Reforma que produzem serviços espe-             necessária uma melhor articu-
mental é perigosa para a so-        Psiquiátrica em Fortaleza, que cializados, como formação de             lação entre os serviços da rede
ciedade. Nara alerta: “É tão        visa a desinstitucionalização e a pessoal e consultorias em saúde       assistencial, para reduzir inter-
perigoso quanto qualquer pes-       inclusão social,                                    mental. No que      nações sucessivas nos hospitais
soa dita “normal”. De acordo        são     algumas                                     diz     respeito    psiquiátricos; garantir psicofár-
com a psiquiatra, o psicótico       dessas ações.            As mudanças nos à assistência                  macos de forma continuada e
ou neurótico só irá se defender         Como parte                                      farmacêutica,       sistemática; capacitar profission-
- segundo a lógica dele, é uma      do plano de                                         houve um inves-     ais do SUS para exercitar a escuta
defesa, não um ataque – das         desinstitu-          resultado boas mé- timento total de                e dar suporte ao sofrimentol;
                                                           tratamentos têm
pessoas que a mente delirante       cionalização,                                       R$ 1.072.358,34     fortalecer o trabalho de inclusão
dele considere como um pos-         os     hospitais                                    para compra de      produtiva, dentre outros.
                                                           dias.Somente em
sível perseguidor. Raimunda         psiquiátricos          2008, houve uma psicotrópicos.                       De acordo com a psiquia-
Felix também defende a mesma        estão     sendo                                         Uma novi-       tra Nara Brito, o modelo ideal
opinião. Para ela, essas pessoas    substituídos,
                                                        redução de 200% na dade no que se                   de assistência à saúde mental
são como qualquer outra.            e seus antigos média de permanên- refere ao trata-                      seria aquele em os portadores
    Para ajudar a desconstruir      pacientes estão      cia das internações mento de doen-                 de transtornos mentais graves
o imaginário popular de que         sendo      trata-                                   ças mentais é       fossem tratados no CAPS e as-
essas pessoas são perigosas,        dos em CAPS,                                        a Oca de Saúde      sistidos por uma equipe mul-
a Secretaria da Saúde Mental        Residências               hospitais gerais. C o m u n i t á r i a ,     tidisciplinar, compostas por
                                                            psiquiátricas em
de Fortaleza está promovendo        Terapêuticas e                                      inaugurada em       psiquiatra, psicólogo, terapeuta
encontros, rodas de conversa        hospitaisgerais.                                    2007. Nela el-      ocupacional, enfermeiro, assis-
e atividades socioterápicas, e      As mudanças                                         ementos sociais     tente social, dentro de um pro-
fechando parcerias com out-         nos tratamentos têm resultado e culturais da comunidade do              jeto terapêutico individual, de-
ras secretarias – Secretaria de     boas médias. Somente em 2008, Conjunto São Cristovão, como              senvolvido em conjunto com a
Desenvolvimento Econômico e         houve uma redução de 200% na curandeiros, artistas populares,           equipe de referência e visando
Secretaria de Meio Ambiente -,      média de permanência das inter- poetas são agregados, a fim de          a reinserção social e a deses-
a fim de inserir os pacientes dos   nações psiquiátricas em hospi- preparar o grupo para os de-             tigmatização. Em momentos
CAPS em trabalhos solidários.       tais gerais. Antes, os pacientes safios do dia-a-dia e estimular        de crise, deveria ser assistido a
    De acordo com o Relatório       passavam, em média, 40,6 dias a consciência social. Com um              nível hospitalar, de preferência
de Gestão de Saúde Mental           nos hospitais psiquiátricos, tratamento mais alternativo,               em leitos psiquiátricos em hos-
2008, entre 2005 e 2008, di-        agora, sendo tratados em hos- que visa a prevenção e a cura,            pital geral, por curtos períodos.
versas ações foram executadas       pitais gerais, a média caiu para a Oca utiliza práticas de mas-             Para a psiquiatra, a idéia do
visando mudar o quadro de           13,3 dias.                          soterapia, argiloterapia e relax-   CAPS é um pouco distorcida
em níveis locais. “O CAPS nasceu      está sendo construído é o caminho     terapêuticas, os freqüentadores
como um serviço substitutivo às       da transculturação, no qual a so-     do CAPS participam de grupos de
internações psiquiátricas, tendo      ciedade mudará sua lógica na com-     conversa, oficinas, atendimento
como público-alvo psicóticos e        preensão e aceitação da loucura,      psicoterapêutico individual, ativi-
neuróticos graves e não pacientes     como sendo inerente à natureza        dades de relaxamento, em que a
com transtornos leves que de-         humana”, concluiu a Coordenação       arte, através da música e atividades
veriam ser atendidos em ambu-         Colegiada de Saúde Mental.            corporais e manuais, é usada como
latórios de psiquiatria”, adverte.                                          terapia e forma de expressão.
A médica, que não defende nem o                                                      Vindos de vários mundos,
modelo “CAPScêntrico” nem “hos-                                             diferentes realidades e abatidos
                                         Um sonho de liberdade
pitalocêntrico” – focados em CAPS        Ao todo em Fortaleza existem       por múltiplas causas desencadead-
e hospitais psiquiátricos respec-     14 CAPS, que, tecnicamente, dever-    oras dos transtornos, os pacientes
tivamente -, vê na diversidade dos    iam atuar em casos de transtornos     do CAPS xxx encontram conforto
equipamentos a melhor forma de        moderados e severo. Entretanto, a     e amizade entre novos amigos,
tratar os pacientes.                  carência de residências terapêu-      com semelhantes delírios e vidas
    A coordenadora do Caps xxx,       ticas, postos de atendimento oca-     distintas, e médicos, psicólogos,
Daniele, admite: “Casos leves, na     siona a sobrecarga dos CAPS, que      terapeutas ocupacionais, artistas,
realidade, não são para serem trat-   são obrigados a atuar em casos de     farmacêuticos, assistentes sociais,
ados no Caps. Caps é para trata-      transtornos leves. Em defesa ao       que juntos lutam por uma vida
mento de casos graves e modera-       fim dos manicômios e da reinser-      mais humana e igual.
dos, onde há interrupção de vida      ção dos pacientes na sociedade,          Logo ao entrar no CAPS já se
social. Só que a nossa rede ainda     através da convivência diária e da    percebe que não estamos num
não está preparada para assumir       volta ao trabalho, os CAPS surgi-     lugar comum. Diferente do que
essa responsabilidade”.               ram e vem se firmando como um         poderíamos imaginar, é um lugar
    A coordenadora Raimunda afir-     importante meio de acolhimento e      alegre, bonito e com variadas ro-
ma que embora ainda se conviva        tratamento de pacientes com vari-     tinas, sons e cheiros. Não é difícil
com os dois modelos, “o nosso ide-    ados tipos de psicoses e neuroses.    encontrar um personagem ansio-
al seria aquele que não precisasse       Cientes da difícil realidade das   so para falar de si e das suas idéias,
mais internar ninguém no hos-         pessoas que procuram tratamento       por vezes, fantásticas. Mas mais
pital psiquiátrico, onde pudésse-     nos CAPS, os profissionais do CAPS    ainda para serem vistos e ouvidos
mos dar conta disso nos hospitais     XXX uniram-se aos pacientes, para     como pessoas pensantes e ricas de
gerais e nos caps. Mas isso é uma     juntos encontrar o melhor camin-      subjetividade.
construção”.                          ho para alcançar a realidade ou,         Ansiando adentrar aquele mun-
    A Rede de Assistência a Saúde     pelo menos, chegar mais próximo       do em parte desconhecido, camin-
Mental teve um grande avanço,         dela. “Uma vez mergulhado numa        hei e, entre um passo e outro, fui
porém, “a consolidação de uma         crise, quem vai dizer aonde quer      encontrando personagens vivos
política que tem em sua essência      chegar são eles. A gente vai dando    para essa matéria. Ocupados em
a transformação do modelo assis-      as ferramentas. Essa melhora é        uma das oficinas ofertadas pelo
tencial e da cultura não acontece     subjetiva em termo de retomada        CAPS, encontrei quatro homens
em um curto período de tempo.         de vida”, adverte Daniela.            entretidos no trabalho de recu-
Acredita-se que o caminho que            Envolvidos em atividades           peração de uma mesa. Sociáveis,
sorridentes e simpáticos, eles     pessoas vêm apenas para fazer
foram respondendo, entre risos,    a manutenção. Muitas pessoas
a uma e outra pergunta que os      se restabelecem e voltam a ter
fazia.                             uma vida normal. Trabalham,
   Há dois anos envolvidos na      estudam, namoram”, comem-
oficina de marcenaria, onde a      ora. Segundo a coordenadora
terapeuta ocupacional Fernan-      Daniele, alguns pacientes vêem
da Maria Ramos Barbosa faz um      muito mais significado nas
trabalho de resgate da auto-es-    tarefas que desempenham hoje
tima, do poder de decisão e do     do que quando trabalhavam.
equilíbrio, todos são unânimes     “Cada caso é uma caso. Cada
ao afirmarem com um sonoro         caso é uma história”, pontua.
sim o prazer de participar dela.      Apesar da curiosidade de
Fernanda observa que os bons       saber um pouco sobre todos,
resultados devem-se as de-         minha atenção se deteve num
cisões democráticas tomadas:       homem de sorriso largo, dentes
“Tudo é feito com eles, com a      perfeitos e roupa social. Eraldo
participação deles”.               de Sousa Rocha, 40 anos, mo-
   Segundo terapeuta, os re-       rador do Montese, de pronto
sultados são positivos: “Muitas    se destacou. Com português
correto, voz clara e detal-       vulgar a mensagem de Deus”,
hada e algumas pausas para        Eraldo elogia a profissão de
                                                                   Saiba Mais
reflexão, ou mesmo pegar          jornalista e lança a perguntas
                                                                   >> O perfil dos pacientes dos Caps   stornos mentais de um modo

fôlego, Eraldo não se inibiu      que me deixa sem resposta:
                                                                   são de pessoas que sofrem de tran-   geral; 06 CAPSad, para pessoas

ao falar sobre si a uma curio-    Você teria coragem de fazer
                                                                   storno mental grave a moderado,      que apresentam uso ou abuso

sa desconhecida.                  uma reportagem na Faixa de
                                                                   como depressão, pânico e esquizof-   de álcool ou outras drogas e 02

    Adorador de Deus e dos        Gaza? Não demorou muito
                                                                   renia.                               CAPSi, voltados para crianças e


assuntos ligados à galáxia, o     para eu inverter a situação,
                                                                                                        adolescentes;


filho de mãe viúva e tio de 10    ao perguntar sobre o grande
                                                                   >> Compõem a Rede Assistencial       1 Residência Terapêutica; 1


sobrinhos, disse que além de      amor dele. Eraldo soltou uma
                                                                   de Saúde Mental de Fortaleza: 14     Unidade de Saúde Mental em


ler a bíblia, gosta de assistir   sonora gargalhada e limitou-
                                                                   CAPS - 06 CAPS Gerais, para tran-    Hospital Geral, com 30 leitos; 1


ao jornal. “Eu gosto porque       se a afirmar: “tem que casar”.
                                                                                                        Serviço Hospitalar de Referên-


mostra a realidade”, comenta.         O homem que prefere orar
                                                                                                        cia em Álcool e outras Drogas,
                                                                                                        com 12 leitos; 2 Emergências

Contraditório ou não, o certo     a rezar, faz casinhas porque
                                                                                                        Psiquiátricas Especializadas

é que ele seguiu falando de       parecem com igrejas e acred-
                                                                                                        e 09 Emergências Clínicas em

Deus. Entre uma conversa          ita que Israel dominará o
                                                                                                        Hospitais Municipais, 18 Equipes

e outra, Eraldo disse que já      mundo sofre de esquizofre-
                                                                                                        de Apoio Matricial em Saúde


traduziu uma bíblia do in-        nia, mas parece não se in-
                                                                                                        Mental, apoiando ações de


glês para português e que,        comodar ou não perceber
                                                                                                        saúde mental na Atenção Básica;


nos momentos livre, gosta de      problema nisso. Alto astral,
                                                                                                        3 Ocas de Saúde Comunitária,


fazer poemas evangélicos.         ele nos prestigia com alguns
                                                                                                        que realizam atividades de pro-


    Mas esse jovem senhor,        versos: “Adoremos a Deus em
                                                                                                        moção de saúde, com os grupos


com alegria de criança, con-      espírito e em verdade, pois
                                                                                                        de resgate de auto-estima, e
                                                                                                        massoterapia.

tinua surpreendendo. Ex-          a sua volta está próxima. O
recepcionista de um hotel         filho de Deus, Jesus Crido de
                                                                                                        >> Hospitais que fazem parte da

quatro estrelas de Fortaleza,     Nazaré”.
                                                                                                        Rede Assistencial Hospitalar:

Eraldo garante falar inglês e
                                                                                                        Hospital Nossa Senhora das


francês e engata um diálogo
                                                                                                        Graças e Hospital Gonzaguinha


em francês, um pouco con-
                                                                                                        da Barra do Ceará para o aten-


fuso, como nosso fotógrafo.
                                                                                                        dimento dos usuários através


Outra supressa foi a revela-
                                                                                                        do internamento clínico e/ou


ção de que mantém contato,
                                                                                                        psiquiátrico no Hospital


via cartas, com a Sociedade
                                                                                                        Clínico; Hospital Batista Memo-
                                                                                                        rial – Unidade de Saúde Men-

Bíblica Trinitariana, na In-
                                                                                                        tal Ana Carneiro/Instituto Dr.

glaterra. O que garantiu brin-
                                                                                                        Vandick Ponte para internação

cadeiras e risos dos amigos.
                                                                                                        psiquiátrica dos usuários dos

Porém, Eraldo não se inibiu
                                                                                                        CAPS.


e continuou respondendo às
perguntas.
    Mesmo preferindo ter
cursado informática “para di-
S
Lutas antimanicomiais anseiam o fim do isolamento
           egundo a psicologia, a         com as devidas justificativas.          disso. Somente nos últimos quatro           quantidade de usuários internados
           loucura ou insânia é a            Essa Lei tem impedido que mui-       anos o número de CAPS pratica-              por transtornos mentais esquizotípi-
           condição da mente hu-          tas arbitrariedades sejam cometidas.    mente quintuplicou em Fortaleza.            cos e delirantes e transtornos do hu-
           mana caracterizada por         Quem nunca ouviu falar, nem que seja    Pulando de três para 14.                    mor (afetivo), em Fortaleza, reduziu
pensamentos considerados anor-            por meio das telenovelas brasileiras,       De acordo com o Relatório de            em 24,07%. Conseqüentemente a
mais pela sociedade. As doenças           casos de pessoas sãs ou com peque-      Saúde Mental e Cidadania 2008, da           essa redução, o valor total pago pe-
mentais, comumente enquadradas            nos surtos nervosos que foram inter-    Secretaria de Saúde de Fortaleza, “a        las internações psiquiátricas refer-
como loucura, existem há cente-           nadas por familiares de forma irre-     implantação de uma rede de serviços         entes aos diagnósticos dessas doen-
nas de anos. Entretanto, a história       sponsável ou maldosa. Muitas delas      substitutivos ao hospital psiquiátri-       ças também diminuiu.
da loucura vai ganhando sentido e         acabaram de fato perdendo a luci-       co fundamenta-se nos princípios                Em contrapartida, houve um au-
conotações diferentes conforme a          dez e estão até hoje trancafiadas em    do SUS, da Reforma Psiquiátrica, da         mento de cerca de 280% no número
época.                                    muitos hospitais psiquiátricos que      Luta Antimanicomial, da Política de         de visitas domiciliares e institucio-
   Se na Idade Média o louco era          ainda existem Brasil a fora.            Humanização”. Segundo Raimunda              nais e um acréscimo de aproxima-
visto com certo misticismo, até mes-         Com o objetivo de transformar        Felix, um dos serviços dentro desse         damente 590% do número de aten-
mo como sagrado, a partir do século       esses hospitais em locais de passa-     modelo é a unidade de internação            dimentos individuais. Em relação ao
XVII, o louco vai ser visto como per-     gem e, posteriormente, extingui-los,    dentro do hospital geral.                   número de atendimentos grupais e
turbador da ordem social, tornando-       as lutas antimanicomiais propõem            Na proposta de desinstitucional-        atividades comunitárias, houve um
se um excluído, relegado ao confina-      a reinserção desses pacientes aban-     ização da loucura em Fortaleza está a       aumento de cerca de 390%, compa-
mento. Com essa mudança na forma          donados e esquecidos no tempo.          criação das Redes Assistenciais Hospi-      rando os anos de 2006 a 2008. Para
de ver o louco, surgem os primeiros       Segundo a coordenadora da Rede          talares em substituição aos hospitais       a coordenadora, esse aumento deve-
internamentos. Ao contrario do que        Assistencial de Saúde Mental de For-    psiquiátricos e a garantia de acesso        se a abordagem aberta dos CAPS em
poderia se pensar, os hospícios não       taleza, Raimunda Felix de Oliveira,     aos serviços comunitários, evitando         contato direto com a comunidade.
foram criados para curar ou tratar e,     essa luta é defendida pelo municí-      a internação e a permanência de pes-                Apesar das muitas conquis-
sim, para evitar que os loucos ficas-     pio: “A gente aqui em Fortaleza tem     soas com transtornos mentais em hos-        tas alcançadas ao longo dos anos,
sem vagando nas ruas das cidades.         a política municipal de saúde mental    pitais psiquiátricos.                       é preciso criar ainda uma rede de
   Maus tratos, medo, preconceito,        que é baseado no fim dos hospitais          Assim, a partir das Redes Assisten-     saúde mental sólida e integrada em
discriminação. São algumas das pa-        psiquiátricos e na substituição desse   ciais, usuários dos hospitais psiquiátri-   Fortaleza, que garanta atendimento
lavras associadas aos manicômios.         modelo por um modelo de atenção         cos de Fortaleza estão sendo transferi-     de qualidade e o acompanhamento
Visando desmistificar a idéia de loucu-   psicossocial”, observa.                 dos para uma Residência Terapêutica,        com profissionais qualificados e ex-
ra e inserir pessoas com transtornos         Diferentemente de 30 anos atrás,     onde será iniciando um processo de          perientes. A rede de saúde mental é
mentais na vida em comunidade,            as Lutas Antimanicomiais já alcan-      ressocialização e de resgate da cidada-     basicamente baseada em hospitais
surgiram as Lutas Antimanicomiais         çaram uma longa lista de conquistas.    nia. “As residências são casas de mo-       psiquiátricos e CAPS. É necessário
nos anos 70, que deram início à Re-       A reformulação do modelo de Aten-       radias para as pessoas que não tem          diversificar. “Precisa haver mais
forma Psiquiátrica, definida pela Lei     ção à Saúde Mental, que prega o fim     nenhum vinculo familiar, que são mo-        residências terapêuticas, CAPS, am-
10216/2001 (Lei Delgado). Nela um         da instituição hospitalar em prol de    radoras de hospitais psiquiátricos há       bulatórios de psiquiatria, centros de
dos seus artigos diz que o Ministério     uma Rede de Atenção Psicossocial,       muito tempo” explica Raimunda.              convivência, leitos de psiquiatria em
Público deve ser comunicado até 72h       estruturada em serviços abertos e           Como resultado da política An-          hospital geral”, argumenta a psiquia-
todas as internações psiquiátricas,       comunitários, é um bom exemplo          timanicomial, entre 2005 e 2008, a          tra Nara Brito.
O
                    Perfil
O mundo de imaginação do poético homem sem razão

              mundo de imaginação do          Parecem escolher permanecer na in-
              poético homem sem razão         diferença, desviando o olhar quando
                 Se antes as pessoas com      confrontados.
              distúrbios mentais mantin-          O que se percebe, como observa-
   ham-se isoladas da sociedade, esta         dor oculto, é uma tensão pairando no
   lógica está sendo invertida. É comum       ar. As pessoas fingem conviver com
   encontramos pessoas com transtor-          naturalidade, com aquele homem
   nos mentais perambulando pelas             em plena efervescência mental, mas
   ruas de Fortaleza. Abandonados, fu-        fecham-se em si, a fim de evitar con-
   gitivos? Não se sabe! O certo é que        frontos, talvez com seus medos, pre-
   esses personagens inusitados perme-        conceitos ou temores.
   iam as entranhas da cidade, procla-            Os que conhecem o jovem, que
   mando frases soltas, brigando com o        dorme nos arredores do bairro, pro-
   inconsciente ou dando respostas aos        tegido dos intempéries numa agência
   sofrimentos humanos.                       bancária das proximidades, afirmam:
       Aos freqüentadores da pracinha         “Quando ele era bom (lúcido) sempre
   da Gentilândia, no Benfica, não deve       falava do sonho de voltar pra família”.
   ter passado despercebida a presença        Segundo Miltinho, homem conversa-
   de Nelson. Mesmo por trás de uma           dor que trabalha vendendo lanches
   barba espessa, pele curtida pelo sol e     numa das barracas da praça, Nelson
   vastos cabelos desgrenhados, perce-        sempre dizia que iria mandar uma
   be-se um jovem, com pouco mais de          carta para o programa do Gugu Lib-
   24 anos, de rosto sofrido e olhos ex-      erato para que o ajudassem a voltar
   pressivos. Vestido com farrapos e de       para família.
   pés descalços, o antigo flanelinha, que        Contudo, anos passaram, sonhos
   hoje vive de ajuda, passa seus dias per-   passaram e com eles levaram a luci-
   correndo a praça e proferindo frases,      dez de Nelson. O homem, meio bicho,
   para muitos, incompreensíveis              meio criança, que hoje circula sem
       Com passos firmes, ele transita        rumo pelas ruas do Benfica, encon-
   entre os passantes, buscando, com          tra alegria mesmo nas coisas simples.
   olhar ávido, alguém que lhe dispense       Brincar de ligar e desligar o medidor
   um pouco de atenção. Entretanto, os        do poste, tornou-se seu passatempo.
   que passam, embora alimentem curi-         Fazer ginástica no meio da praça e
   osidades e se indaguem quem é essa         jogar bola com a garotada também
   pessoa? O que faz? Onde vive? Como         faz parte das suas distrações.
   chegou a esse estágio de loucura?              Entretanto, nem sempre os dias
são bons, e nos momentos de       “Ele era muito zeloso. Andava       identidade preservada, diz que     hando sem rumo, parando às            Citando o poeta dos lou-
raiva e agitação, descarregar     todo arrumado, limpo”, acres-       há 12 anos conhece Nelson e        vezes para cantarolar alguma       cos, Raul Seixas, diria que esse
as energias batendo, socando      centa uma das moças. Longe          que em todos esses anos nunca      música ou ensaiar alguns pas-      homem, de um nome só, de in-
ou chutando um outro poste,       do mundo real há quase quatro       apareceu nenhum familiar do        sos. Foi num desses momentos       disfarçável conotação, o tal Fil-
torna-se a sua econômica e nem    anos, o homem de pouco passa-       colega. Entretanto, Nelson ga-     de passeio que, na tentativa de    ho de Campeão, Nelson, talvez
tão saudável válvula de escape.   do, que vive há 18 anos nas ruas,   rante que sempre viveu em For-     um diálogo, invadi o universo      pense: “Enquanto você se es-
Mas Miltinho garante: Ele não é   cruza despercebido pelos olhos      taleza e que os familiares moram   imaginário de Nelson e travei      força pra ser um sujeito normal
violento, ele não mexe com nin-   das autoridades e da sociedade      nas proximidades.                  uma breve conversa. Desconfia-     e fazer tudo igual. Eu do meu
guém!”.                           mascarada de “boas intenções”.         Querido por companheiros        do, ele olhava, baixava a cabeça   lado aprendendo a ser louco.
   Recordando o Nelson son-          Tratando-se de Nelson, as        dos tempos de sobriedade e aju-    e mexia nos cabelos. Parecia es-   Maluco total, na loucura real... E
hador do passado, Miltinho e      informações mesmo reais pare-       dado por conhecidos, o homem       tar vendo um ser de um mundo       esse caminho que eu mesmo es-
outras companheiras da labuta     cem desencontradas. O amigo         cabisbaixo, mas de sorriso largo   distante do dele. Falou pouco,     colhi, é tão fácil seguir, por não
lembram como ele era diferente.   flanelinha, que prefere manter a    e vibrante, passa os dias camin-   sorriu e se foi.                   ter onde ir...”.

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O garoto por trás dos doze: a história de Rafael, traficante de drogas de 21 anos na periferia de Fortaleza

  • 1. 09 Sumário Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma 02 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla 05 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma 12 umsdsdfw cbnuma umsdsdfw cbnuma 18 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma 25 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma 22 Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma 32 Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma 39 Ibh nnnesed tions acil nnneumod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma 51 46 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma 64 Ibh esed tions acil euismod te ero con ulla umsdsdfw cbnuma
  • 2. O garoto por trás dos doze 1 N Por Arthur Pires Foros de Chico Célio egro, 1,70 m de altu- A comunidade da Vila Ca- Ricardo, que morreu há pouco ra, bastante franzi- zumba, onde Rafael nasceu, mais de dois anos e era irmão no, daqueles em que cresceu e vive até hoje, começou de seu pai, o criou como um fil- as costelas saltam a surgir entre o fim da década ho, pois morava vizinho ao ga- aos olhos e a magreza notória de 70 e o início dos anos 80, roto. Em periferias, é bastante afunda até mesmo a maçã do quando o Tancredo Neves, fave- comum que famílias rosto, Rafael (nome fictício) la vizinha e uma das maiores de de irmãos não se deixa suplantar pela sua Fortaleza, já apresentava barra- morem próxi- aparente fragilidade física. O cos apinhados, colados uns aos mas umas jovem P.S.F.S., iniciais da ver- outros, que se expandiram rapi- das outras. dadeira identidade de Rafael, damente para os lados de forma aos 21 anos, já é um dos prin- inconsequente e não planejada. cipais vendedores de droga da Dessa expansão do Grande Tan- comunidade da Vila Cazumba, credo Neves surgiram comuni- na zona sul de Fortaleza, próxi- dades à sua volta, como as fave- mo à Cidade dos Funcionários. las do Gato Morto, do Tasso, do Como de praxe, por sua “fun- Vila Verde e da Vila Cazumba. ção” dentro da comunidade, É nessa realidade que vive Rafael tem prestígio e impõe Rafael. O jovem é o terceiro de respeito e medo, mesmo sem uma família de quatro irmãos, querer, a muitos dos mora- criados por dona Aparecida, dores. “Às vezes, noto que uns e sua mãe. Perdeu o pai, seu outros me olham meio de rabo Abreu, ainda muito novo, aos de olho2, com medo ou sei lá cinco anos, mas nem por isso o quê”, diz Rafael. E completa: deixou de ter uma figura pater- “Mas a maioria me trata bem, na que o inspirasse e influísse na limpeza3”. na sua escolha de vida. Seu tio,
  • 3. “Ele foi mesmo que um pai: brigava comigo, me batia, mas me ensinou muita coisa tam- bém”, afirma o jovem. “Eu acho que ele gostava também muito de mim porque só tinha filha mulher; eu era o sobrinho que ele mais gostava, eu acho, né!”, completa, saudoso. Ricardo ‘Rolão’, como era conhecido o tio de Rafael, foi por muitos anos o principal vendedor de drogas da Vila Ca- zumba e um dos principais do Grande Tancredo Neves. Não queria que o sobrinho seguisse o caminho do tráfico, mas tam- bém não fazia esforço em es- conder do ainda menino, e dos outros familiares, que a ativi- dade que sustentava a família era o comércio de drogas. Pelo contrário, a venda era feita a céu aberto, na porta de casa. “Ele era muito respeitado pelos mo- radores aqui da Vila; não tinha como esconder da gente que ele elo a ser seguido. “Eu via que só conta, “só vendia maconha, mas dependendo de circunstâncias tação particulares, em média, arrepiava4, pois os caras vin- fazendo aquilo ele sustentava o que tava (sic) ganhando era específicas - como o tamanho 50% a 60% dos pacientes estão ham aqui direto pegar (drogas)”, a família dele e ainda ajudava muito pouco, não dava quase da clientela e a quantidade de internados por dependência explica Rafael, que desde cedo, a gente também”, explica. E foi nada pra mim”. Os papelotes mercadoria - a 400%, 500% do ao crack. Nas clínicas públicas, através do exemplo de seu tio, viu exatamente após a morte de de maconha, ou as ‘balas’, como investido inicialmente: a venda esses índices beiram os 90%. no tráfico de drogas um caminho ‘Rolão’, assassinado por trafi- são comumente chamadas, são de crack. Dessa forma, fica claro que para real e perfeitamente possível de cantes do Tancredo Neves, que vendidos a dois reais cada, o O crack é um subproduto qualquer traficante que se utilize ganhar dinheiro fácil. Rafael decidiu entrar de vez que gera uma receita muito da cocaína que está completa- da venda dessa droga, que custa Como na grande maioria dos para a guerra. pequena para quem trafica. mente disseminado nas perife- cinco reais uma unidade, tem-se casos, Rafael foi mais um garoto Segundo ele, não foi muito Percebendo que o lucro gerado rias brasileiras e avança tam- a certeza de usuários em poten- de periferia que escolheu essa difícil arrumar um “canal”5 com a venda de maconha não bém, a passos largos, em direção cial aos montes. Outro fator que sina espelhando-se em exemp- para comprar a droga em estava sendo suficiente, o jovem à classe média. Estudos e pes- faz ser moda entre os traficantes los próximos à sua volta. No seu grande quantidade para, então, decidiu começar uma empre- quisas de diversos órgãos que a venda do crack é que o usuário caso, o tio, mesmo sem nunca repassá-la. Contudo, prefere itada mais perigosa, porém com lidam com drogas têm mostra- dessa droga não se contenta tê-lo incentivado, foi um mod- não revelar o local. No começo, lucros que chegam, em média, do que, nas clínicas de reabili- com apenas uma, pois esse sub-
  • 4. produto da cocaína tem efeito plex, carro, dinheiro no banco”. droga com a mesma naturali- sentem inveja, relaciona-se pelo controle do comércio de rápido e altamente viciante. “Já A maioria da clientela do jo- dade de um comerciante que bem com todos. Pelo menos no drogas na região. Há momen- teve dia de maluco gastar mais vem é formada pelos próprios vende laranja na feira. O tráfico momento, os traficantes da co- tos, meses até, em que impera de mil reais só aqui comigo; moradores, mas, segundo ele, na favela não pára. Segundo ele, munidade convivem num clima o armistício, mas é preciso outros já deixaram televisão, os clientes mais lucrativos são o movimento é intenso durante respeitoso. O grande problema apenas uma “mancada”12 de som de carro, DVD, relógio, anel os “playboy”8, que normal- todo o dia, inclusive no decor- mora ao lado. Mais especifi- um dos lados para a batalha de prata, cordão de prata, de mente compram a droga em rer da madrugada. Para Rafael, camente, cruzando a Avenida recomeçar a pleno vapor. Essa ouro, um monte de coisa”, conta grandes quantidades. Durante o pior de vender “pedra”10 é José Leon, que marca a divisão disputa já ocasionou várias Rafael. a entrevista, feita no local onde ter que ficar acordado durante entre a Vila Cazumba e o Tan- vítimas fatais, entre elas o tio O jovem diz, com sinceridade sempre “despacha”9, diver- toda a madrugada, “hora em credo Neves. Historicamente, de Rafael, Ricardo ‘Rolão’, que, e desleixo, não se incomodar sos usuários surgiram, sem que aparecem os bruxos”11. os traficantes das duas comu- como dito anteriormente, foi por estar vendendo uma droga cerimônia. O garoto negocia a Por conta dessa rotina, diz nidades vivem numa guerra morto por traficantes do Tan- com alto poder destrutivo ao que acorda somente depois do credo Neves. Fogos de artifício usuário: “Nem penso nisso, se meio-dia para “trabalhar”. rasgam o céu da região quando o cara vem até aqui pegar, é O jovem, obviamente, não há a morte de algum traficante, porque ele quer; só estou fazen- é o único traficante da Vila Ca- seja da Vila Cazumba, seja do do o meu adianto”6. Uma vez zumba. Mas, como gosta de Tancredo Neves. Os fogos são por semana, vai até seu “canal” dizer, “é o que está arrepiando uma espécie de ritual que eles e adquire uma nova remessa mais na área”, orgulha-se. No incorporaram a essa guerra de crack. A quantidade varia entanto, diz que os outros não insana. “Já perdi uns cama- de uma semana para outra, de- radas13, mas é isso mesmo”, pendendo do quanto ainda tem resigna-se Rafael, num misto disponível no estoque, mas em de frieza e tentativa de apagar média, compra semanalmente da memória as lembranças dos entre 40g e 50g da droga. Para amigo perdidos. clarear as ideias, 5g de crack Assim como com os tra- são vendidos, em média, a 120 ficantes do Tancredo Neves, o reais. Quando comprada em relacionamento com a polícia grande quantidade, esse valor é difícil. Rafael conta que a cor- diminui para 100 reais. Portan- poração sabe que o comércio de to, o jovem Rafael, que estudou drogas ocorre na favela, e por até o 1º ano do Ensino Médio e conta disso, “come o troco”14 nunca trabalhou com outra coi- de muitos traficantes. Aquele sa que não fosse o tráfico de dro- que não paga o suborno aos gas, administra, por mês, uma policias, corre seriamente o ris- quantia que varia entre 3.200 e co de ser preso e ter seu negó- 4.000 reais. Muito? Rafael solta cio fechado, derrubado. “Se não uma espontânea gargalhada, se pagar o troco aos homem15 recompõe e esclarece que não: (sic), a casa cai”16, diz o jo- “É uma micharia7! Tem doze lá vem. Os policiais passam no dia no Tancredo que tem é casa du- combinado e saem recolhendo
  • 5. os subornos; em contrapartida, ele tem a ajudado nas despe- vos que os fazem continuar na bons aqui pra mim”, confessa. que muitos dos que exercem a fazem vistas grossas ao comér- sas domésticas, apesar de não atividade ilícita, pois, após con- Sorridente, simpático e brin- atividade ilegal do tráfico não cio de drogas que acontece co- morar mais com ela. Hoje, tem seguir esse prestígio, é muito calhão, o jovem é o contrário do a fazem por escolha, como se tidianamente na favela. seu próprio barraco, que divide difícil se desvincular dele. “As estereótipo do traficante, aque- fosse uma entre ser médico, jor- Quando indagado se também com suas “namoradas”. Fenôme- cumades17 só faltam pular em le de fisionomia carrancuda, au- nalista ou traficante, mas por faz uso da droga que vende, se no comum a essas comunidades cima de mim”, orgulha-se Rafael, toritário, violento e prepotente. uma equação muito simples: o surpreende e é enfático: “Tu é é o poder de sedução que os tra- abrindo um sorriso sarcástico e A atividade que exerce ainda meio em que você nasce aliado doido? Traficante que usa pe- ficantes exercem nas garotas da com um ar pouco modesto. não o embruteceu tampouco com a falta de oportunidades de dra, tudo o que ganha vai só pra periferia. Para elas, namorar um Entretanto, antes de ser um o fez perder o espírito de ga- conhecer outro mundo, senão alimentar o vicío”. Mas admite traficante é sinônimo de poder, traficante de drogas, Rafael é roto. Durante a entrevista, fez aquele em que nasceu. Não que que fuma maconha e, “de vez de status dentro da comuni- um jovem de 21 anos e, como várias brincadeiras com quem Rafael seja um exemplo de vida, em quando, no fim de semana”, dade. Semelhante encantamen- qualquer outro, tem seus gostos, passava pelo local. As estatísti- não que se Rafael tivesse nasci- cheira cocaína. O fato gritante é to ocorre com as crianças, que suas vontades e seus amigos, cas deterministas provam que do numa família de classe média que a maioria esmagadora dos vêem na figura do traficante um com quem gosta de “jogar fute- comumente a vida no tráfico teria um futuro promissor, mas jovens de periferia recorre às exemplo a ser espelhado, tendo bol e tomar umas geladas”18. aponta para dois caminhos: a Rafael nos ensina, mesmo sem drogas pela facilidade de acesso em vista que aqueles estão sem- Torce para o Flamengo e para o morte ou a prisão. Rafael parece querer, a ter sempre um sorriso que encontram. pre com roupas novas e tênis de Fortaleza. Não vai aos jogos do não pensar muito nisso; vai le- no rosto, espírito de jovialidade Rafael conta que a mãe, dona marca, relógios caros etc. Essa seu time porque a atividade não vando a vida como um garoto e, e atitude perante desafios, não Aparecida, sabe da atividade idolatria que se deposita sobre o permite. “Os jogos são sempre sem saber, como gente grande. importa em que situação nos dele, mas não o recrimina, pois eles é também um dos moti- domingo ou quarta, e aí são dias Ele é um exemplo clássico de encontramos.
  • 6. Glossário da periferia 1_Doze Gíria para traficante, que advém do Art.12 do Código Penal brasileiro que versa sobre tráfico de drogas 2_Olhar de rabo de olho Olhar desconfiado 3_Tratar na limpeza Tratar bem, tra- tar com educação, com respeito 4_Arrepiar Traficar, vender bem, vender bastante 5_Canal Local (ou pessoa) onde os traficantes compram a droga em grande quantidade para revender 6_Adianto Serviço, trabalho 7_Micharia Pouco dinheiro, quantia insuficiente, pequena quantidade 8_Playboy Jovens de classe média 9_Despachar Vender, negociar 10_Pedra Crack, tem essa gíria porque é vendida em pedrinhas envoltas em sacos plásticos “Rafael nos ensina, 11_Bruxos Viciados crônicos, geral- mesmo sem querer, mente os mais impulsivos pela droga a ter sempre um 12_Mancada Vacilo, erro sorriso no rosto, es- 13_Camaradas Amigos, parceiros pírito de jovialidade e atitude perante 14_Comer o troco Subornar desafios, não impor- 15_Homem Policial ta em que situação 16_A casa cair Ter seu negócio fecha- nos encontramos” do e/ou ir para a prisão 17_Cumade Mulher, garota 18_Gelada cerveja
  • 7. Histórias de Beco quando a poeira assenta, entrevemos rostos, punhos e corações Reportagem e ilustrações por May Araújo
  • 8. e a grande maioria: confecções costureira, destinada a cruzar em jeans e as chamadas “mod- tantas vezes, anos depois, o co- inhas”, blusas, saias e vestidos mércio erguido sobre o terreno em malha fria ou radiosa. negociado àquele dia. Não recordo a primeira vez A tarde fortalezense é em que estive no Beco. Provavel- quente e abafada. Os meses ini- mente me deveria guiar o pun- ciais do ano trazem as chuvas ho seguro de minha mãe, apres- de São José e, por isso, o bafo sada, cruzando as vielas de morno e impróprio do asfalto tecidos; meus olhinhos infantis entope-me as narinas. Compro decerto turvos da correria e de um lanche qualquer no Shop- Pesquisava a relação entre obstáculos inúmeros: roupas, ping Metrô e cruzo a rua, programas policiais, ditos pop- calçados, pessoas. Barulho, intrigante comparar o ularescos, e seus espectadores multidão, cores rompendo o quarteirão do shopping que se reúnem despretensiosa- gris bolorento dos boxes e um com as fotografias da mente ao redor de tvs em bares único norte: a destra materna. hemeroteca: eram meados quando, tão aleatoriamente O Beco como é conhecido dos anos 80 quando ali hab- quanto eles, fui levada a revisi- hoje nasceu junto comigo. Não a itava As Brasileiras. Enquanto tar, com olhos de pesquisadora, estrutura, inaugurada em 1991, Hebe Camargo estrelava, sorri- o espaço que sempre cruzei mas a idéia, a decisão primeira: dente, os cartazes publicitários desde menina: o Beco da Poe- à tarde do dia 4 de novembro de da grande loja de departamen- ira. Adentrei-o e ali me quis es- 1987, na sede do Banco do Nor- tos, o verdadeiro beco subsis- tabelecer. Mudei de tema. deste, a prefeita em exercício, tia do outro lado da rua, a con- O Centro Comercial de Maria Luiza Fontenele, se reunia tradição estampada, barracos Pequenos Negócios ou Centro com sua equipe e acertava a re- de madeira e alvenaria forma- de Pequenos Negócios de Ven- forma do terreno à época con- vam becos estreitos, abrigos de das Ambulantes, chama-se, na hecido por beco da poeira para 15 famílias e sustento de out- verdade, Beco da Poeira, situa- receber o “feirão popular”, ain- do entre as praças da Lagoinha da de frutas e verduras. Horas e José de Alencar, no centro depois, na madrugada daquele de Fortaleza. Um dos maiores, mesmo dia, eu nasci – Mayara senão o maior centro de comér- Carolinne Beserra de Araújo, cio popular do Estado. As três filha de funcionário público e grandes tendas em ferro e ami- anto abrigam em torno de 2.050 boxes, organizados em 22 es- treitas galerias, subdividas por gêneros comercializados: fru- tas e verduras, eletrônicos, mi- udezas e importados, calçados
  • 9. prefeita senhora esse mes a senhora vai pagar ros 52 “locatários”: desem- pessoas tornam-se não mais modo, mas não se pode ig- pregados donos de biroscas que vultos e as conversas, norar isso. Como gosto de ver imundas; cafetinas, gigolôs, fórmulas repetidas – Quanto o jornalismo? Eu vou dizer: prostitutas velhas e muito custa? Que cores tem? Que jornalismo, para mim, é a arte novas; vendedores de lanche, tamanhos? Tem desconto? de fazer amigos. Os teóricos frutas, verduras e carnes, cu- Qualquer comportamento já diziam como é preciosa e jos restos – vísceras, bagaços, que fuja a essa dinâmica é tênue a relação que criamos miúdos – tomavam o chão encarado com estranheza. com as fontes, repare: chego das vielas. Uma latrina em Minha presença inquisidora, em um lugar, apresento-me, forma de tosco labirinto a céu curiosa e relaxada é quase digo ser de uma empresa aberto. O beco da poeira era o ofensiva. Isso era o que eu jornalística ou de alguma lar dos excluídos, dos descui- pensava antes de conhecer universidade de comunica- distas, bêbados, putas. Sob a os meus primeiros amigos de ção, digo que vou fazer uma névoa da poeira habitavam Beco. reportagem e o entrevistado os esquecidos. Só quem escreve assim, diz-me, às vezes, muito mais Às duas horas de uma tar- em primeira pessoa, sabe o do que preciso saber sobre de quente em que há pouco que é submeter-se a esses sua vida. Baseado em que? chovera entrar no Beco re- relatos. Mas quem nunca es- Um crachá? Uma promessa quer antes certo preparo psi- creveu? Diários, cartas de de reportagem? Que louca cológico para a experiência amor, quem nunca contou é essa relação de extrema sensorial de uma brusca mu- um segredo? Falar sozinho confiança entre estranhos e dança de ambiente, é quase é tão mais fácil por que até que maravilhosa ao mesmo como ser trancado em um nosso idioma - honesto - ex- tempo, sobretudo quando fosso, um calabouço de teto plica que dizer é sinônimo ao final de uma conversa de, rebaixado, quente e úmido. de afirmar e então quando se sabe-se lá, 15, 20 minutos, Se o espaço urbano por si diz algo, para alguém ou um fazemos amigos. Por que eu só possui tempo e espaço papel que seja, é como con- faço jornalismo? Por paixão diferenciados, no Beco, am- firmar, tornar tudo verdade. a essa bendita sensação de bos sobrem nova subversão: Dói e amedronta expor assim fazer amigos pela confiança, há outra correria, outros sentimentos meus e de out- pela honestidade, ainda que modos, o tempo passa mais ras pessoas, mas é para isso concom itantemente depressa, a passada aperta que os jornalistas estão no não saiba quase nada sobre e os olhos correm vertigi- mundo, não? Para expor. Não este novo conhecido; por nosos. É dessa forma que as gosto de ver as coisas deste poder chegar às fontes não
  • 10. como certos jornalistinhas entes convivendo embaixo que agem como se as pessoas daquele amontoado de ami- tivessem a obrigação de lhes anto. Deixe-me começar do ceder informações, mas com começo: estava seguindo uma tranqüilidade curiosa de duas atendentes de plano de quem quer, quando possível, saúde que entravam no Beco ainda que brega, parodiar conversando sobre namora- Roberto Carlos e perguntar: dos, vizinhas, coisas quais- “Como vai você?” Se o fíga- quer. Interessei-me pela con- do de alguns jornalistas não versa e logo estava em um fosse todos os dias comido corredor ainda desconhe- pelo tempo, feito Prometeu , cido pra mim, era a principio conheço muitos que adorari- estreito e depois mais largo, am pôr isto em prática. com uma lanchonete, cadei- Voltando aos meus ami- ras e mesas ao fundo. Pensei: gos de Beco, estes me mostr- “perfeito para desenhar, não aram quão grande é aquele precisarei tomar o lugar de lugar sem que eu precisasse ninguém e vou poder agir caminhar pelos corredores, discretamente”. Sentei-me, levaram-me a pensar como retirei lápis e borrão e me são tantas pessoas difer- pus a observar o cenário. À Sob a nevoa da poeira, a multidao de sombras se mexe esquerda, duas vendedoras a vendedora absorta quando nada, não havia o que temer bros. Todas as vezes que fazia senho que você fez?” conversavam, uma delas ol- as coisas começaram a mudar: e estava ansiosa para saber este trajeto, voltava ao box com Estava desmoronada a mu- hava o chão absorta, sentada notei uma certa movimenta- como acabaria aquilo, quando uma novidade, em pouco tem- ralha do silêncio, da impessoal- em uma das pernas, trazia a ção curiosa em torno de mim, percebessem que os estava re- po os relojoeiros já também idade e, a partir dali, decantara bolsa à tira-colo, onde pudesse os vendedores cochichavam produzindo. me olhavam curiosos, todos a poeira do Beco: os rostos não ver; mais à frente, mais duas entre si e me olhavam descon- Aconteceu logo, em cerca sabiam o que se passava, mas eram mais vultos, mas pessoas, vendedoras conversavam; à fiados. Não demorou para que de quinze minutos, uma das ninguém dizia nada, até que a com suas histórias, tempera- direita, um vendedor loiro ol- eu entendesse: estavam com moças levantou-se várias vez- mesma vendedora levantou-se mentos, humores, e quanto hava o movimento e à frente medo de eu estar desenhando es, caminhava para além da uma última vez, olhou-me por humor! Logo fui incluída, ver- três moços concentrados, con- os modelos de suas roupas. minha cadeira e me olhava, cima dos meus ombros e per- dadeira algazarra em torno sertavam relógios. Rabiscava Decidi simplesmente não fazer eu a percebia sobre meus om- guntou: “posso ver o outro de- dos desenhos, todos querendo
  • 11. se reconhecer: “ah, mas eu não obter algumas repostas caiu do e, àquele dia, um gravador. sou feio assim!”, disse irmão por terra, foi nocauteado pela Com a espessa poeira da es- Toninho, “olha que essa aqui é brincadeira dos rabiscos, e logo tranheza decantada, surgiram fulana!”, “esse é ciclano!”... E me lá estava eu entrevistando e rostos. Descobri que estava mostraram o desenho da Paiz- sendo entrevistada: o que você no corredor dos evangélicos inha colado no alto da coluna. faz? De onde é? Você compra e que ali, naquela vizinhança, Uma boneca de longos cabelos, no Beco? E ainda me quiseram eram todos amigos há três ou desenhada a lápis e com os diz- pagar pelo desenho: R$ 2,00! cinco anos. Rita de Cássia é a eres: “Procura-se viva ou mor- Recusei, óbvio. Tão mais val- mais nova, tem 18 anos, tra- ta, recompensa R$ 0,50”. Ah, iosa fora aquela experiência. balha pela manhã até a tarde mas estava errado uma boneca Dias depois retornei para, e estuda à noite, prestará ves- tão feia, “Manda chamar a Paiz- de fato, escrever minha report- tibular para Serviço Social. Rita inha que a menina desenhista agem. E eu que me dizia, com foi a primeira que se dispôs a vai ter que desenhar ela!” Man- ares de pesquisadora: “vou falar. “Desenrolada”, a pequena daram chamar Maria da Paz. apreender as performances contou-me que está ali há três Enquanto desenhava a moça dos vendedores”, conclui que anos, cuidando do Box da mãe. dos longos cabelos loiros e cac- só uma pessoa foi performer Os primeiros dias de vendedo- heados, de repente, aquele es- ali: eu mesma. Se havia alguma ra do Beco foram um tanto difí- forço a que nós jornalistas nos intervenção, era minha, com ceis, era tímida, envergonhada submetemos certas vezes para um lápis, um borrão amarela- e, como Rita mesmo diz, para A vendedora absorta, ia mas a bolsa do dinheiro, essa trazia presa ao corpo trabalhar ali é preciso “swing”, se sentem seguros no Beco, além das taxas de manuten- os inseparáveis de um Beco es- queríamos ser reconhecidos, molejo. Hoje fez amigos, de- os malandros da praça volta e ção quitadas mensalmente, quecido pelas autoridades. entende?”, disse-me João Pau- clara que aquela é a parte mais meia estão por lá, mas pouco se os vendedores se submetem Ainda que o Beco da Poe- lo, o Loiro, questionando-me divertida do Beco, gosta do que escuta de furtos. Quem assusta a péssimas condições de tra- ira seja um diferencial da capi- quantas vezes eu tinha visto faz e prefere estar ali a vender mesmo é o “rapa” em busca de balho. A estrutura é precária, já tal cearense (tanto que certos alguma propaganda do Beco em feiras livres, onde se sen- CDs piratas. diversas vezes condenada pela turistas chegam a pagar guias da Poeira na televisão. Jamais, tia insegura e o trabalho era Mas nem tudo são flores, se vigilância sanitária. Em tem- para visitá-lo nos meses de ja- Loiro, eu mesma nunca vi. E mais pesado. Quanto à segu- o Beco hoje representa oportu- pos de chuva como os de agora, neiro e julho), os permission- apesar disso, como ele mesmo rança, não só Rita como os out- nidade para centenas de per- a água imunda dos banheiros ários reclamam que não há disse, possivelmente mais da ros vendedores que estavam missionários, o preço que se volta pelos ralos. Fedentina, nenhum tipo de divulgação por metade das lojas de confecção por perto confirmaram que paga por ela não é barato: para calor e sujeira são companheir- parte da prefeitura. “Nós só de shoppins da região Norte
  • 12. são abastecidas com roupas “made in” rando e saindo de suas galerias, vendil- a vida a todo custo. Os vendedores ca- mercadoria e recebia em troca, muitas Beco da Poeira. A verdade é que ali hões que alimentam o comercio infor- dastrados do Beco não divergem dos vezes, desprezo. Ali o “não” é comum, se lucra por quantidade e os maiores mal e, por meio dele, dão de comer a si informais da praça, aproximam-se, mas não frustra os vendedores, a con- compradores descem aos montes na mesmos e a suas famílias. O Beco, saído oferecem, insistem, “chegam junto” do corrência mora ao lado e por isso a ne- rodoviária fortalezense e têm outros das entranhas da diversidade de uma freguês, cada passante é um potencial cessidade de manter certa disposição sotaques. praça pulsante e viva como sempre fora consumidor. Loiro é um dos que con- constante, apesar do cansaço, e o mais João Paulo de Souza, o Loirinho, tem a José de Alencar – que se reinventa e firma a tese, contou-me que, em seu importante, como disse Rita de Cássia, 23 anos e deixou o trabalho na roça, em repovoa, apesar das tentativas higieni- primeiro dia de trabalho, acostumado manter o jogo de cintura. Se não há pro- Morrinhos (município a 208 quilômet- stas das gestões municipais de varrer com a vida difícil de ambulante, chegou vador, com dois panos, faz-se uma cor- ros da capital), sua cidade natal, pra “vagabundos” e ambulantes –, herdou “arrepiando”: chamava o cliente, anun- tina; se não cabe, aperta; se a perna da tentar a vida em Fortaleza. Foi camelô dela a avidez de quem precisa ganhar ciava os produtos no gogó, oferecia a calça é grande, uma dobra, um ponto e na Washington Soares e outras aveni- das da cidade, vendia calculadoras, con- troles remotos, mas a vida de ambulan- te também não rendia. Loiro já pensava menina Rita: pra vender no Beco, tem de ter em voltar pra roça quando um primo, fabricante de confecções, convidou-lhe jogo de cintura para trabalhar no Beco. Atualmente, João cuida do Box do primo há 5 anos e afirma – com segurança – que se lhe tudo está resolvido. O Beco da Poeira é oferecessem um emprego na Otoch ou o mercado do “jeitinho brasileiro”, con- na C&A em pleno Iguatemi, recusaria stituído não só pelos permissionários, prontamente. mas por marmiteiros, tapioqueiros, Muitas histórias se entrecruzam, tan- cafezeiras – nome popularmente dado to quanto os corredores do complexo, a às mulheres vendedoras de cafezinho vizinhança, os grupos a cada corredor -, malandros, catadores, artistas. Nessa fazem da grande feira uma Fortaleza dinâmica, entre as galerias, além dos em proporção menor, com bairros, ruas, visitantes, dezenas de isopores, tab- esquinas, quarteirões, casas e vizinhos. uleiros e até bicicletas desafiam a estre- No Beco, há engarrafamento, polícia, iteza dos caminhos, ganhando a vida à prefeito, ele consiste, portanto, em mais custa do ganha-pão de outros tantos. um núcleo organizado dentro da cidade Essa é a vida de Francisco Antonio que absorveu dela suas característi- da Silva, 22 anos, mais conhecido como cas. E assim como em uma cidade, não Pastel-menino. Francisco recebeu esse vivem do Beco somente os permission- apelido do oficio de vendedor de pas- ários, mas outros tantos, que ao redor tel e suco, ele percorre aquelas galerias da dinâmica da feira inauguram outro há 5 anos, oferecendo pastel e espe- movimento, são dezenas de ambulantes rando ansioso alguém gritar “Pastel, às portas do Centro Comercial, ou ent- menino!”, indicação de mais um cliente garantido. Pastel-menino mora na Praia
  • 13. do Futuro, acorda 5 e meia da manhã e voamento, a não ser que as pessoas que do o novo Beco da Poeira. deixa o serviço às 5, 6 da tarde, quando as habitam hoje não sejam considera- A esperança virou decep- o Beco fecha as portas. Ao contrário do das dignas, merecedoras, de estar ali. ção: meses depois, a obra que, em geral, se pensa, Francisco não é Fica a pergunta: quem, afinal, os ge- foi embargada e o din- autônomo nem tem a liberdade de en- stores municipais querem ver povoar heiro, milhões aliás, desa- trar e aproveitar o movimento do Beco as praças do Centro? pareceu. como bem entenda, ele é contratado Fundado em 1991, na gestão do pre- Agora os jornais anun- para vender os pasteis e, para que ele feito Juracy Magalhães, o Centro Com- ciam: “De zero a 10 está possa caminhar pelos corredores, seu ercial de Pequenos Negócios fora antes em nível 8 o fechamento patrão paga mensalmente uma certa um projeto do programa de revitaliza- da aquisição da antiga te- quantia ao sindicato, Pastel-menino Loro de Morrinhos : voce ja viu propaganda do Beco na TV? não sabe quanto. ção do centro, iniciado por Maria Luiza celagem Tomaz Pompeu, Manter em ordem a venda ambu- Fontenele. Atualmente, na gestão da na avenida do Impera- lante, contudo, não é uma novidade do prefeita Luizianne Lins, mais uma ten- dor, para ser a futura sindicato. Na verdade, a reorganização tativa é feita, desta vez motivada pela sede do atual mercado do centro de Fortaleza, ou revitalização, construção da Estação Lagoinha do do Beco da Poeira” . No- foi meta de vários gestores fortalezens- Metrofor – projeto de metrô de Fortale- vamente, expectativa e es. Chega a ser engraçada a contradição za -, cuja sede será onde hoje está situa- desconfiança, esperança de batizar como revitalização o ato de do o Beco da Poeira. Segundo prefeitura e descrença mesclam-se expulsar ambulantes do centro. Perce- e governo do Estado até o fim deste ano entre os permissionári- ba: revitalizar não é restaurar, repor a a obra necessita estar pronta, gerando os. A tecelagem, avaliada vida? E quem disse que as praças estão novos sentimentos de apreensão e ex- em 7,4 milhões de reais, desabitadas, vazias? A praça ferve do pectativas nos permissionários do Cen- dispõe de muito mais es- movimento de passantes, que param tro Comercial, que se preparam, depois paço do que o “esquele- em círculo para ver os artistas ganha- de 18 anos no mesmo estabelecimento, to” erguido em 2004, rem a vida com malabares, cantorias e para uma provável mudança definitiva. que atualmente, para palhaçadas. Seus bancos estão reple- Pouco antes, em 2004, esta apreen- receber o Beco da Poeira tos de pessoas, desde consumidores são e expectativa de mudança fora necessitaria do terreno do centro, cansados da caminhada, até plantada uma primeira vez no seio dos de mais 10 a 13 imóveis desempregados, ambulantes, boêmios vendedores. Um terreno fora comprado do entorno, segundo José e prostitutas. As praças do centro não num acordo entre prefeitura, sindicato Nunes Passos, secretário estão vazias para precisarem de repo- e construtora para que fosse inaugura-
  • 14. do Centro. A mudança para a Aveni- ou sem Beco, continuará vendendo da do Imperador gera especulações, seu pastel, já que no Centro não fal- os vendedores questionam se será, ta freguesia, mas sente por outros de fato, amplo e organizado como vendedores que não trabalham no prometem. “Vai ter ar-condicionado, mesmo “esquema” que ele. “A gente praça de alimentação...”, comentou não sabe se eles vão deixar o pessoal Loiro, empolgado, seguido de um andar lá dentro, nem se vão poder “Menos, Loiro, menos!”, do irmão colocar barraca do lado de fora, vai Toninho. Mas o que os permission- que tem lanchonete lá dentro aí a ários reivindicam não passa de gente fica sem saber como fazer...”, condições melhores de trabalho: admite Francisco. boa instalação elétrica, espaço mais A tarde cai tão rápido quanto amplo entre os boxes, um sistema de chega. Será que, na tecelagem fecha- ventilação adequado, banheiros dig- da, será possível distinguir o dia da nos. Quanto aos ambulantes do Beco, noite, como debaixo dessas tendas? como Pastel-menino, a situação é um É hora de despedir-me com uma úl- tanto mais preocupante, já que eles tima pergunta: o que levam desse não sabem se, em uma nova estru- lugar, caso realmente se mudem? Do tura, inaugurada como exemplo da que terão saudades? Rita se adianta eficiência da aliança prefeitura-gov- e diz “De nada, não tenho apego por erno do Estado, haverá a possibili- esse lugar.”, mas concorda, aliás, to- dade de ambulantes circulando nas dos concordam, de certa forma, com galerias novinhas. Francisco está um a resposta de Loiro: “Vou sentir falta pouco mais tranqüilo por que, com dos meus amigos, por que lá a escol-
  • 15. ha dos boxes vai ser por sorteio, E me vou embora, às 17:40 da então não sei se a gente vai ficar tarde quente e abafada, cru- junto, é muito difícil. Os meninos zando as vielas de verdadeiros aqui já são meus amigos dentro contabilistas a calcular os lucros e fora do Beco, a gente é tudo e a recontar estoques no fim de evangélico, então vai pra igreja mais um dia de batalha, alguns junto, sai junto e lá eu não sei fecham as malas para guardá- como vai ser a nova vizinhança.” las nos boxes minúsculos, out- Quando penso que irmão ros para levá-las à praça da Sé Toninho, Loiro, Rita de Cássia, e lá enfrentar a feira livre que Paizinha, Pastel-menino, e out- já já começa e vira a noite até ros tantos, carinhosos e acolhe- o raiar de um novo dia, em que dores, não são sequer um décimo todas aquelas pessoas, histórias da população da grande feira, re- de vida, se reúnem novamente. spiro fundo e entrevejo na poe- Deixo o Beco com a sensação de ira um caminho longo de outros acompanhar uma história em vultos que se tornarão rostos, marcha, mas, desta vez, não na pessoas, punhos firmes como os margem, mas completamente de minha mãe, a me guiar por imersa no rio da vida. E vou-me aquelas galerias, em encontros feliz, plena de imagens, relatos, sucessivos de histórias de vida. grávida de tudo.
  • 16. O Pre núncio Conto da Casa do Português Por Emanuele Sales Fotos de Chico Célio
  • 17. N o dia em que foi marido fora encontrado ar- à direita, encarando a vidra- embora para sem- quejando sua última angús- ça. Antonio fizera questão de pre da casa, Violeta tia era onde Violeta Sanches mandar construir sete arcos Sanches acordou dormia todas as noites desde em ambas as laterais e três cedo, como era de costume, que entrara na casa, e o espe- defronte, em cada pavimento e apressou-se em verificar lho do toucador, presente da – dizia que seriam para cada a caixa de correspondência. sogra, estava no mesmo lugar um dos sete filhos que viriam Bateu com o sino na grade da há treze anos, como tudo lá ao mundo. Mesmo sem ol- cama quatro vezes; como a estava. Por isso, não era de har pra eles, Violeta Sanches criada não acudisse, resolveu se espantar que a vizinhança os via todas as manhãs, ao descer sozinha ao jardim. Era chamasse o imponente e sin- acordar. a segunda vez em treze anos gular casarão de “a casa mal Chamava-se Alísio o filho, que lhe ocorria levantar-se da assombrada”. Mas Violeta tinha o nome do bisavô por- cama, fazer a toalete e sair da Sanches preferia associá-lo tuguês. Contava três anos casa sem que os empregados a uma espécie de memorial, de idade quando Antonio ou o marido estivessem por um tributo ao que se passou: o trouxera à casa, embora perto. A primeira havia sido ela e o marido recém casa- as freiras do orfanato não um mês depois do acidente, dos; ela entrevada na cadeira soubessem ao certo a data do e ela nunca mais a esqueceu, de rodas entrando na casa nascimento. Era um rapaz de embora julgasse o contrário: pela primeira vez, subindo de feições indecisas a andar pe- caíra da cama como se fosse carro a enorme rampa; os fil- los jardins, sempre com um uma criança de mãe descui- hos que nunca teriam; o filho livro na mão. Àquela época dada, tombara de bruços que tiveram e perderam. pendia-lhe um buçozinho amolecendo um dente. O dia Do lugar de onde vis- que o pai insistia em chamar estava claro, havia um vento lumbrava o amanhecer, não de bigode. Gostava de es- seco adentrando os cômodos, chegava a confrontar os raios crever cartas, mas ninguém diferente da aragem úmida solares, antes os entrevia tol- conseguira descobrir quem que percorre toda cidade li- dados pela gaze das cortinas era o destinatário. “Nosso torânea. Ela mesma pensava e impelidos pelo concreto dos filho já é homem”, Antonio que algo estranho acontecia, arcos. Os arcos da varanda, segredou a Violeta Sanches, a começar pela lembrança do estes sim, eram a primeira um dia em que entrara no acidente. Havia tempo Vio- visão de cada dia. Adorme- quarto de Alísio sem bater à leta Sanches não pensava no cia olhando para o teto, como porta. Levantava cedo e ia a passado, achava que tivesse se ali houvesse um enigma, escola, ao retornar almoçava enterrado as lembranças o talhe reto, e nessa posição e permanecia nos jardins ou com o marido morto, mas, despertava, nunca inclinava na varanda até o anoitecer. agora quando aconteceria o a cabeça. A janela do quarto Não saía de casa sem que es- improvável, ela se detinha. dava para a confluência entre tivesse sozinho, não se tinha O quarto não mudara dois dos sete arcos da varan- notícias de amizades suas. O em nada depois que Anto- da lateral, de modo que só pai oferecia-lhe carona até nio morrera. A cama onde o eram vistos por quem virasse o colégio, mas ele recusava
  • 18. enquanto podia: “São só alguns começo, tinha compaixão do deixando as pessoas que vivem ensaiada. Evitariam encontros passos”. menino de olhos atentos, sem juntas parecidas, mas pela ma- casuais no mundo que era a Violeta Sanches esforçou-se família nem passado. Depois, neira como a olhava. Houve um casa. para amá-lo como se tivesse nos primórdios da adolescên- tempo em que até mesmo a pre- Uma tarde, enquanto as nascido dela, como Antonio o cia, Alísio cada vez mais lhe fig- sença dele à mesa gerava-lhe criadas ajudavam-na durante amava. A bem da verdade, o urava um estranho, não por ele incômodo. Foi então que, num o banho, ouviu alguém camin- sentimento era recíproco, mãe ser totalmente imune às mar- acordo tácito, ambos passaram har no quarto. Tinha a audição e filho o compreendiam. No cas da convivência, que acaba do esforço cínico à displicência bastante apurada, percebia a mínima intensidade de um som, inabilmente e girou a maçaneta. As No dia seguinte, enquanto toma- fosse numa conversa barrada por moças que a banhavam soltaram um va ar defronte à entrada principal, paredes, fosse numa nota musical grito de horror ao ver Alísio de pé, Violeta Sanches escutou novamente destoante. Pensou que Antonio es- no limiar. Violeta Sanches apenas o os passos da tarde anterior, des- tivesse no quarto, mas lembrou-se encarou, enxergando nele um sem- sa vez vinham de cima. Olhou em de que o marido havia ido ao ar- blante de serenidade. Pediu às em- direção ao céu e viu Alísio sobre o mazém fazia pouco tempo. Os pas- pregadas que jamais comentassem teto jardim. “Ele não deveria estar sos aproximavam-se da porta, não o episódio. À noite, durante o jantar, na escola?” – pensou sem tirar os era Antonio, ela estendeu o braço Alísio não sentou-se à mesa. olhos do rapaz. Depois, não pensou
  • 19. em mais nada, revelou para si que estava apenas escondida. – um mau agouro. Tudo na casa aquela só podia ser a imagem de Ao cabo de cinco minutos, recendia ao que vivera e o que um anjo. Cartas de amor espalha- que para Violeta Sanches signifi- estava ainda por ser vivido, mas vam-se sobre o terreno, levadas caram mais de dez anos, a criada fora abortado. Nesse instante a pelo vento, pareciam brotar dos atendeu-lhe o chamado. “Leve- verdade tornou-se clara. Era pés de Alísio, todas endereçadas me até o jardim”, ordenou. “Mas preciso romper. a ela. “São só alguns passos, min- assim, senhora?”, espantou-se a Subiu a rampa com a força ha amada” – disse ele com a voz criada. “Imediatamente”, disse dos próprios braços até chegar mansa, olhando a como nunca, e sem hesitar. Cruzou todo o pa- ao teto jardim. Lançou um úl- atirou-se ao chão. vimento de olhos fechados, só timo olhar sobre a cidade e as Os meses seguintes até a morte ousou abri-los quando estava na pessoas, como se estivesse a de Antonio foram para Violeta frente da caixa de correspondên- despedir-se do que não tinha Sanches uma provação divina, cia. Ali mesmo conferiu as cartas, sido seu. Experimentou o ven- diferentes do tempo atual. Agora, não havia nada informando a to quente ressecar-lhe a pele e ela ria quando a brisa fazia cóce- chegada dos parentes, somente embaraçar-lhe o cabelo. Uma gas em seu nariz, tocava piano pacotes com revistas de moda lágrima desceu-lhe aos lábios. uma vez por semana e deixava-se que a cunhada lhe mandava. Es- De súbito, sentiu sobre si um ficar todas as manhãs no portão, a forço inútil, agora tinha de voltar olhar curioso, ouviu passos observar o movimento na avenida e viver de novo. Virou-se e con- que lembravam os de Antônio que ganhava cada vez mais au- templou a enorme construção e uma voz doce, quase idêntica tomóveis. Sentia-se jovem ainda; diante de si. Aquela casa tinha a de Alísio: “Bonjour, cunhada! era, de fato, das que resistiam sido feita para ela: os arcos, os Preparada para a viagem?”. muito ao peso dos anos. Corre- jardins, a rampa, o destino de spondia-se com uma irmã de An- quem ali habitasse; desde os pi- tonio que vivia na França em com- lares fora planejada para uma in- panhia do irmão caçula, e decidira válida, antes mesmo do acidente aceitar o convite para morar com os dois. Combinaram a ida, ambos viriam buscá-la. Na manhã em que foi embora para sempre da casa, lembrou-se exatamente de checar o correio para saber da chegada dos cunhados, quando a sua vida ressurgiu, silenciosamente, pois
  • 20. Adendo ao Conto O Prenúncio Este conto é uma narrativa chamava José Maria Cardoso, classe social em ascensão, tra- É o homem de barba branca ficcional baseada em histórias português, negociante de ma- duzido através da monumen- no expresso Parangaba - Mu- ouvidas a respeito do casarão deira para a construção de talidade, da estética exótica e curipe que brada ter conhecido na Avenida João Pessoa, nº ferrovias no Ceará, era casado do porte da estrutura de con- o “bendito português”, tinham 5094. Muito se fala sobre a e tinha um filho. A casa foi in- creto (...) Ressalte-se a adequa- sido até amigos na juventude!; Casa do Português, mas pouco augurada em treze de junho de da implantação da residência, é o vizinho quase centenário, se sabe ao certo sobre a vida de 1953, com tamanho que ainda que favorece a iluminação e que vendeu os azulejos Kab- quem ali morou, salvo pesqui- hoje tem, apesar de nunca ter ventilação dos vários ambi- lin usados no revestimento da sas acadêmicas e registros his- sido ocupada por completo entes, sobretudo nas varandas cozinha da casa; é a moça que toriográficos do antigo Bairro nem mesmo pelas sete famílias e em toda a área de lazer nos passa em frente quase cor- Damas, reduto de sossego na que lá residem sob autorização dois últimos pavimentos. Por rendo, ao retornar da escola, Fortaleza que crescia ao início dos legatários. todos esses aspectos citados, a temendo o prédio “mal-assom- do século XX. Hoje o prédio é tombado edificação ainda hoje constitui brado”. Todas testemunhas de Para a escritura deste con- pela Fundação de Cultura, Es- marco visual no entorno, dis- suas próprias histórias, docu- to, foram levados em consider- porte e Turismo de Fortaleza tinguindo-se das demais.” mentos da lembrança ou de- ação somente dados referentes (Funcet), sob justifica e de- A arquitetura incomum vaneio, cada qual com uma ex- à estrutura da casa, ao mo- scrição integrantes do proces- chamou atenção dos órgãos plicação óbvia para construção mento em que foi construída e so: “Edifício em bloco único, públicos para a importância da de uma casa tão grande para a seus primeiros anos, ou seja, as de forma retangular, de dimen- casa como patrimônio mate- família pequena do português, décadas de 1950 e 1960. Para sões 33m x 14m, possui quatro rial, mas o imaginário popular para a rampa em detrimento da tanto, tomaram-se precauções pavimentos e está a o nível da faz tempo a eternizou relíquia, escada, para os arcos que con- durante a pesquisa. Procurou- rua, no centro do terreno, com daquelas que se contempla tornam os pavimentos, para o se não adentrar demais o ter- afastamento de cerca de 18m tentando adivinhar o passado. teto jardim que coroa toda a ritório da realidade para não da via principal e com recuos Não é difícil andar pelas imedi- estrutura. São esses os aponta- perder o mote da criação base- laterais. É contornada pela ações da Avenida João Pessoa mentos trespassados pela sub- ada em narrativas colhidas em rampa em forma de ferradura, e encontrar quem fale da Casa jetividade do narrador que se andanças pelo Damas. A quem que tem presença marcante do Português nomeando-se privilegia no conto – registros possa interessar a busca por no conjunto e que dá acesso a testemunha ocular da história da memória e da imaginação registros historiográficos, seg- todos os pavimentos. Padrão do imóvel – Fortaleza tem que constituem a prova de que uem alguns apurados de início: diferenciado para a época, que desses personagens mais fan- a mente humana se apropria o primeiro dono do prédio se revelava os valores de uma tásticos do que reais. do inexplicável.
  • 21. A Loucura H que margeia Fortaleza ospício glob- al. Esse termo, lançado para o mundo num dos livros mais vendidos do Brasil, o Vendedor de Sonhos, parece representar bem a realidade em que vivemos atualmente. Talvez por isso, o livro com um título tão inusitado esteja suscitando Por Lívia Nunes tanta curiosidade entre leitores Fotos de Chico Célio brasileiros. Buscando enquadrar-se no sistema, homens e mulheres es- condem-se por trás de roupas de grife, carros do ano, sorri- sos vendidos. Mantendo a falsa ilusão de serem felizes. Como resultado a tanta pressão, jo- gos de aparência, luta pelo poder, cresce uma população cheia de medos e marcada por distúrbios mentais, como a de- pressão, e a esquizofrenia. Sem falar nos transtornos de humor e ansiedade.
  • 22. Como atestam os psicólo- mentais. O que equivale a 5 mil- para superá-los. pode ter um adoecimento emo- mentais, e isso vai da classe gos, a loucura anda junto com hões de jovens. Para a psiquiatra, esses cional”, enfatiza. social alta a classe social mais a normalidade. Nos dias atuais, Em Fortaleza, ainda não ex- números refletem “os males da Quanto a ligação entre po- baixa. “Essa coisa do determin- a linha que separa esses dois iste uma pesquisa que demon- vida moderna, sobre uma so- breza e loucura, a psiquiatra ismo é complicada (...) Não é mundos parece estar ainda strem esses números. Mas ciedade competitiva, que pres- Nara, vê a miséria como um porque a pessoa é pobre que mais tênue. A prova disso está considerando os dados da Or- siona cada vez mais o indivíduo fator estimulador na deflagra- ela vai ter o transtorno. Precisa nas ruas, nas praças, nos becos, ganização Mundial da Saúde a ser o melhor”. Outro fator que ção de distúrbios mentais. “A de uma série de fatores. Tem nas calçadas ou escondidos em que afirma que cerca de 3% da explica o aumento dos casos de pessoa pode ter uma vulnera- morador de rua que não tem quartos escuros. população, em qualquer lugar transtornos mentais é o fato bilidade específica, que quan- o transtorno mental. O que vai Andar nas ruas de Fortaleza do mundo, está sujeita a de- das pessoas estarem mais aten- do influenciada por um fator determinar isso é a estrutura – no centro da cidade em es- senvolver transtornos mentais. tas à divulgação das informa- estressor importante permite de cada um”, destaca. pecial – nos dá uma dimensão Podemos estimar que existam ções pela mídia e ao progresso que os sintomas se desenvol- Contudo, estima-se que dessa realidade. Esbarrar com cerca de 750 mil pessoas em da psiquiatria nos últimos anos. vam”, observa. A miséria é as doenças psiquiátricas têm “loucos” já não é uma cena in- Fortaleza propensas a desen- “Encontra-se mais porque sim- uma delas! Já para uma das co- grande chance de se desen- usitada. Os números confir- volverem algum transtorno plesmente procura-se mais”, ordenadoras da Rede de Saúde volver na pobreza, onde va- mam essa tendência mundial mental. destaca. Mental de Fortaleza, a psicóloga lores humanos são esquecidos a doenças mentais. Estima-se Segundo a psiquiatra Nara Já a psicóloga e coordena- Raimunda Felix, as pessoas po- e massacrados pela dor, fome e que 15% da população mun- Fabíola Costa de Brito, os dis- dora do Caps xxx, Daniela xxxx, dem enlouquecer em qualquer rejeição. “Nenhum antidepres- dial (975 milhões de pessoas) túrbios mais encontrados em acredita que esse aumento é classe. “O determinante social sivo vai aliviar a dor de não ter precisem de atendimento em Fortaleza são depressão e tr- em resposta a um grande vazio tem uma influencia, mas não é a o que comer, o que vestir, de saúde mental. No Brasil, 28,3% anstornos de ansiedade em existencial, que possibilita que causa. Não pode ser vista como viver inseguro, com medo da milhões sofrem de algum tran- geral. “O transtorno depressivo essas crises eclodam. “Eu ficar a causa primeira”, rebate. violência urbana (...). A questão storno mental, conforme dados é muito comum e a prevalên- falando apenas de crise exis- Já a coordenadora do Caps é puramente social e não de do Ministério da Saúde. cia estimada durante a vida é tencial é um pouco burguês acredita que a história de vida, saúde pública”, critica Um dado preocupante é o de 15%. O transtorno afetivo demais, porque nós temos out- o histórico familiar, o contex- Nara. número de jovens que apre- bipolar tipo I é estimado em ras questões também, como a to em que se vive pode Para Dan- sentam sintomas de doenças 1%, semelhante às taxas para pobreza, a falta de freios. Mas propiciar ou não iela xxx, mentais. De acordo com pes- esquizofrenia”, informa. Outro nada disso é determinante soz- a eclosão de essa quisa realizada pela Associa- distúrbio com grande incidên- inho. Temos que considerar a doenças ção Brasileira de Psiquiatria, cia são as fobias, entretanto, por historia da pessoa, como ela estima-se que existam, aproxi- desconhecerem os sintomas, os viveu, como ela se estruturou, madamente, 12,6% brasileiros, indivíduos portadores desse tr- para ver se ela vai ter um surto entre 6 e 17 anos, com doenças anstorno não procuram auxílio ou não. Qualquer um de nós
  • 23. realidade de dor e medo é vi- abandono em que se encon- Segundo dados fornecidos amento. “A gente trabalha com venciada no cotidiano dos Caps, tram as pessoas com transtor- pelo Relatório, ao longo de o que o território apresenta aonde, diariamente, chegam nos mentais. A contratação de 2008, a SMS fez um investimen- de potencialidades”, ressalta várias pessoas - trazidas por equipes de saúde mental, a es- to financeiro de R$ 8.380.775,59 Raimunda Felix. amigos, familiares ou vizinhos truturação dos serviços, a qual- com a Rede Assistencial de Apesar dos avanços perce- -, buscando ajuda após tentar o ificação profissional, o incentivo Saúde Mental. Dos quais, R$ bidos no tratamento de doen- suicídio. ao controle social e a discussão, o 1.926.401,79 foram destinados ças mentais, há muito a ser Desmistificando a idéia de planejamento e avaliação do pro- a parcerias com instituições feito. Como atesta o Relatório é que a pessoa com distúrbio cesso de implantação da Reforma que produzem serviços espe- necessária uma melhor articu- mental é perigosa para a so- Psiquiátrica em Fortaleza, que cializados, como formação de lação entre os serviços da rede ciedade. Nara alerta: “É tão visa a desinstitucionalização e a pessoal e consultorias em saúde assistencial, para reduzir inter- perigoso quanto qualquer pes- inclusão social, mental. No que nações sucessivas nos hospitais soa dita “normal”. De acordo são algumas diz respeito psiquiátricos; garantir psicofár- com a psiquiatra, o psicótico dessas ações. As mudanças nos à assistência macos de forma continuada e ou neurótico só irá se defender Como parte farmacêutica, sistemática; capacitar profission- - segundo a lógica dele, é uma do plano de houve um inves- ais do SUS para exercitar a escuta defesa, não um ataque – das desinstitu- resultado boas mé- timento total de e dar suporte ao sofrimentol; tratamentos têm pessoas que a mente delirante cionalização, R$ 1.072.358,34 fortalecer o trabalho de inclusão dele considere como um pos- os hospitais para compra de produtiva, dentre outros. dias.Somente em sível perseguidor. Raimunda psiquiátricos 2008, houve uma psicotrópicos. De acordo com a psiquia- Felix também defende a mesma estão sendo Uma novi- tra Nara Brito, o modelo ideal opinião. Para ela, essas pessoas substituídos, redução de 200% na dade no que se de assistência à saúde mental são como qualquer outra. e seus antigos média de permanên- refere ao trata- seria aquele em os portadores Para ajudar a desconstruir pacientes estão cia das internações mento de doen- de transtornos mentais graves o imaginário popular de que sendo trata- ças mentais é fossem tratados no CAPS e as- essas pessoas são perigosas, dos em CAPS, a Oca de Saúde sistidos por uma equipe mul- a Secretaria da Saúde Mental Residências hospitais gerais. C o m u n i t á r i a , tidisciplinar, compostas por psiquiátricas em de Fortaleza está promovendo Terapêuticas e inaugurada em psiquiatra, psicólogo, terapeuta encontros, rodas de conversa hospitaisgerais. 2007. Nela el- ocupacional, enfermeiro, assis- e atividades socioterápicas, e As mudanças ementos sociais tente social, dentro de um pro- fechando parcerias com out- nos tratamentos têm resultado e culturais da comunidade do jeto terapêutico individual, de- ras secretarias – Secretaria de boas médias. Somente em 2008, Conjunto São Cristovão, como senvolvido em conjunto com a Desenvolvimento Econômico e houve uma redução de 200% na curandeiros, artistas populares, equipe de referência e visando Secretaria de Meio Ambiente -, média de permanência das inter- poetas são agregados, a fim de a reinserção social e a deses- a fim de inserir os pacientes dos nações psiquiátricas em hospi- preparar o grupo para os de- tigmatização. Em momentos CAPS em trabalhos solidários. tais gerais. Antes, os pacientes safios do dia-a-dia e estimular de crise, deveria ser assistido a De acordo com o Relatório passavam, em média, 40,6 dias a consciência social. Com um nível hospitalar, de preferência de Gestão de Saúde Mental nos hospitais psiquiátricos, tratamento mais alternativo, em leitos psiquiátricos em hos- 2008, entre 2005 e 2008, di- agora, sendo tratados em hos- que visa a prevenção e a cura, pital geral, por curtos períodos. versas ações foram executadas pitais gerais, a média caiu para a Oca utiliza práticas de mas- Para a psiquiatra, a idéia do visando mudar o quadro de 13,3 dias. soterapia, argiloterapia e relax- CAPS é um pouco distorcida
  • 24. em níveis locais. “O CAPS nasceu está sendo construído é o caminho terapêuticas, os freqüentadores como um serviço substitutivo às da transculturação, no qual a so- do CAPS participam de grupos de internações psiquiátricas, tendo ciedade mudará sua lógica na com- conversa, oficinas, atendimento como público-alvo psicóticos e preensão e aceitação da loucura, psicoterapêutico individual, ativi- neuróticos graves e não pacientes como sendo inerente à natureza dades de relaxamento, em que a com transtornos leves que de- humana”, concluiu a Coordenação arte, através da música e atividades veriam ser atendidos em ambu- Colegiada de Saúde Mental. corporais e manuais, é usada como latórios de psiquiatria”, adverte. terapia e forma de expressão. A médica, que não defende nem o Vindos de vários mundos, modelo “CAPScêntrico” nem “hos- diferentes realidades e abatidos Um sonho de liberdade pitalocêntrico” – focados em CAPS Ao todo em Fortaleza existem por múltiplas causas desencadead- e hospitais psiquiátricos respec- 14 CAPS, que, tecnicamente, dever- oras dos transtornos, os pacientes tivamente -, vê na diversidade dos iam atuar em casos de transtornos do CAPS xxx encontram conforto equipamentos a melhor forma de moderados e severo. Entretanto, a e amizade entre novos amigos, tratar os pacientes. carência de residências terapêu- com semelhantes delírios e vidas A coordenadora do Caps xxx, ticas, postos de atendimento oca- distintas, e médicos, psicólogos, Daniele, admite: “Casos leves, na siona a sobrecarga dos CAPS, que terapeutas ocupacionais, artistas, realidade, não são para serem trat- são obrigados a atuar em casos de farmacêuticos, assistentes sociais, ados no Caps. Caps é para trata- transtornos leves. Em defesa ao que juntos lutam por uma vida mento de casos graves e modera- fim dos manicômios e da reinser- mais humana e igual. dos, onde há interrupção de vida ção dos pacientes na sociedade, Logo ao entrar no CAPS já se social. Só que a nossa rede ainda através da convivência diária e da percebe que não estamos num não está preparada para assumir volta ao trabalho, os CAPS surgi- lugar comum. Diferente do que essa responsabilidade”. ram e vem se firmando como um poderíamos imaginar, é um lugar A coordenadora Raimunda afir- importante meio de acolhimento e alegre, bonito e com variadas ro- ma que embora ainda se conviva tratamento de pacientes com vari- tinas, sons e cheiros. Não é difícil com os dois modelos, “o nosso ide- ados tipos de psicoses e neuroses. encontrar um personagem ansio- al seria aquele que não precisasse Cientes da difícil realidade das so para falar de si e das suas idéias, mais internar ninguém no hos- pessoas que procuram tratamento por vezes, fantásticas. Mas mais pital psiquiátrico, onde pudésse- nos CAPS, os profissionais do CAPS ainda para serem vistos e ouvidos mos dar conta disso nos hospitais XXX uniram-se aos pacientes, para como pessoas pensantes e ricas de gerais e nos caps. Mas isso é uma juntos encontrar o melhor camin- subjetividade. construção”. ho para alcançar a realidade ou, Ansiando adentrar aquele mun- A Rede de Assistência a Saúde pelo menos, chegar mais próximo do em parte desconhecido, camin- Mental teve um grande avanço, dela. “Uma vez mergulhado numa hei e, entre um passo e outro, fui porém, “a consolidação de uma crise, quem vai dizer aonde quer encontrando personagens vivos política que tem em sua essência chegar são eles. A gente vai dando para essa matéria. Ocupados em a transformação do modelo assis- as ferramentas. Essa melhora é uma das oficinas ofertadas pelo tencial e da cultura não acontece subjetiva em termo de retomada CAPS, encontrei quatro homens em um curto período de tempo. de vida”, adverte Daniela. entretidos no trabalho de recu- Acredita-se que o caminho que Envolvidos em atividades peração de uma mesa. Sociáveis,
  • 25. sorridentes e simpáticos, eles pessoas vêm apenas para fazer foram respondendo, entre risos, a manutenção. Muitas pessoas a uma e outra pergunta que os se restabelecem e voltam a ter fazia. uma vida normal. Trabalham, Há dois anos envolvidos na estudam, namoram”, comem- oficina de marcenaria, onde a ora. Segundo a coordenadora terapeuta ocupacional Fernan- Daniele, alguns pacientes vêem da Maria Ramos Barbosa faz um muito mais significado nas trabalho de resgate da auto-es- tarefas que desempenham hoje tima, do poder de decisão e do do que quando trabalhavam. equilíbrio, todos são unânimes “Cada caso é uma caso. Cada ao afirmarem com um sonoro caso é uma história”, pontua. sim o prazer de participar dela. Apesar da curiosidade de Fernanda observa que os bons saber um pouco sobre todos, resultados devem-se as de- minha atenção se deteve num cisões democráticas tomadas: homem de sorriso largo, dentes “Tudo é feito com eles, com a perfeitos e roupa social. Eraldo participação deles”. de Sousa Rocha, 40 anos, mo- Segundo terapeuta, os re- rador do Montese, de pronto sultados são positivos: “Muitas se destacou. Com português
  • 26. correto, voz clara e detal- vulgar a mensagem de Deus”, hada e algumas pausas para Eraldo elogia a profissão de Saiba Mais reflexão, ou mesmo pegar jornalista e lança a perguntas >> O perfil dos pacientes dos Caps stornos mentais de um modo fôlego, Eraldo não se inibiu que me deixa sem resposta: são de pessoas que sofrem de tran- geral; 06 CAPSad, para pessoas ao falar sobre si a uma curio- Você teria coragem de fazer storno mental grave a moderado, que apresentam uso ou abuso sa desconhecida. uma reportagem na Faixa de como depressão, pânico e esquizof- de álcool ou outras drogas e 02 Adorador de Deus e dos Gaza? Não demorou muito renia. CAPSi, voltados para crianças e assuntos ligados à galáxia, o para eu inverter a situação, adolescentes; filho de mãe viúva e tio de 10 ao perguntar sobre o grande >> Compõem a Rede Assistencial 1 Residência Terapêutica; 1 sobrinhos, disse que além de amor dele. Eraldo soltou uma de Saúde Mental de Fortaleza: 14 Unidade de Saúde Mental em ler a bíblia, gosta de assistir sonora gargalhada e limitou- CAPS - 06 CAPS Gerais, para tran- Hospital Geral, com 30 leitos; 1 ao jornal. “Eu gosto porque se a afirmar: “tem que casar”. Serviço Hospitalar de Referên- mostra a realidade”, comenta. O homem que prefere orar cia em Álcool e outras Drogas, com 12 leitos; 2 Emergências Contraditório ou não, o certo a rezar, faz casinhas porque Psiquiátricas Especializadas é que ele seguiu falando de parecem com igrejas e acred- e 09 Emergências Clínicas em Deus. Entre uma conversa ita que Israel dominará o Hospitais Municipais, 18 Equipes e outra, Eraldo disse que já mundo sofre de esquizofre- de Apoio Matricial em Saúde traduziu uma bíblia do in- nia, mas parece não se in- Mental, apoiando ações de glês para português e que, comodar ou não perceber saúde mental na Atenção Básica; nos momentos livre, gosta de problema nisso. Alto astral, 3 Ocas de Saúde Comunitária, fazer poemas evangélicos. ele nos prestigia com alguns que realizam atividades de pro- Mas esse jovem senhor, versos: “Adoremos a Deus em moção de saúde, com os grupos com alegria de criança, con- espírito e em verdade, pois de resgate de auto-estima, e massoterapia. tinua surpreendendo. Ex- a sua volta está próxima. O recepcionista de um hotel filho de Deus, Jesus Crido de >> Hospitais que fazem parte da quatro estrelas de Fortaleza, Nazaré”. Rede Assistencial Hospitalar: Eraldo garante falar inglês e Hospital Nossa Senhora das francês e engata um diálogo Graças e Hospital Gonzaguinha em francês, um pouco con- da Barra do Ceará para o aten- fuso, como nosso fotógrafo. dimento dos usuários através Outra supressa foi a revela- do internamento clínico e/ou ção de que mantém contato, psiquiátrico no Hospital via cartas, com a Sociedade Clínico; Hospital Batista Memo- rial – Unidade de Saúde Men- Bíblica Trinitariana, na In- tal Ana Carneiro/Instituto Dr. glaterra. O que garantiu brin- Vandick Ponte para internação cadeiras e risos dos amigos. psiquiátrica dos usuários dos Porém, Eraldo não se inibiu CAPS. e continuou respondendo às perguntas. Mesmo preferindo ter cursado informática “para di-
  • 27. S Lutas antimanicomiais anseiam o fim do isolamento egundo a psicologia, a com as devidas justificativas. disso. Somente nos últimos quatro quantidade de usuários internados loucura ou insânia é a Essa Lei tem impedido que mui- anos o número de CAPS pratica- por transtornos mentais esquizotípi- condição da mente hu- tas arbitrariedades sejam cometidas. mente quintuplicou em Fortaleza. cos e delirantes e transtornos do hu- mana caracterizada por Quem nunca ouviu falar, nem que seja Pulando de três para 14. mor (afetivo), em Fortaleza, reduziu pensamentos considerados anor- por meio das telenovelas brasileiras, De acordo com o Relatório de em 24,07%. Conseqüentemente a mais pela sociedade. As doenças casos de pessoas sãs ou com peque- Saúde Mental e Cidadania 2008, da essa redução, o valor total pago pe- mentais, comumente enquadradas nos surtos nervosos que foram inter- Secretaria de Saúde de Fortaleza, “a las internações psiquiátricas refer- como loucura, existem há cente- nadas por familiares de forma irre- implantação de uma rede de serviços entes aos diagnósticos dessas doen- nas de anos. Entretanto, a história sponsável ou maldosa. Muitas delas substitutivos ao hospital psiquiátri- ças também diminuiu. da loucura vai ganhando sentido e acabaram de fato perdendo a luci- co fundamenta-se nos princípios Em contrapartida, houve um au- conotações diferentes conforme a dez e estão até hoje trancafiadas em do SUS, da Reforma Psiquiátrica, da mento de cerca de 280% no número época. muitos hospitais psiquiátricos que Luta Antimanicomial, da Política de de visitas domiciliares e institucio- Se na Idade Média o louco era ainda existem Brasil a fora. Humanização”. Segundo Raimunda nais e um acréscimo de aproxima- visto com certo misticismo, até mes- Com o objetivo de transformar Felix, um dos serviços dentro desse damente 590% do número de aten- mo como sagrado, a partir do século esses hospitais em locais de passa- modelo é a unidade de internação dimentos individuais. Em relação ao XVII, o louco vai ser visto como per- gem e, posteriormente, extingui-los, dentro do hospital geral. número de atendimentos grupais e turbador da ordem social, tornando- as lutas antimanicomiais propõem Na proposta de desinstitucional- atividades comunitárias, houve um se um excluído, relegado ao confina- a reinserção desses pacientes aban- ização da loucura em Fortaleza está a aumento de cerca de 390%, compa- mento. Com essa mudança na forma donados e esquecidos no tempo. criação das Redes Assistenciais Hospi- rando os anos de 2006 a 2008. Para de ver o louco, surgem os primeiros Segundo a coordenadora da Rede talares em substituição aos hospitais a coordenadora, esse aumento deve- internamentos. Ao contrario do que Assistencial de Saúde Mental de For- psiquiátricos e a garantia de acesso se a abordagem aberta dos CAPS em poderia se pensar, os hospícios não taleza, Raimunda Felix de Oliveira, aos serviços comunitários, evitando contato direto com a comunidade. foram criados para curar ou tratar e, essa luta é defendida pelo municí- a internação e a permanência de pes- Apesar das muitas conquis- sim, para evitar que os loucos ficas- pio: “A gente aqui em Fortaleza tem soas com transtornos mentais em hos- tas alcançadas ao longo dos anos, sem vagando nas ruas das cidades. a política municipal de saúde mental pitais psiquiátricos. é preciso criar ainda uma rede de Maus tratos, medo, preconceito, que é baseado no fim dos hospitais Assim, a partir das Redes Assisten- saúde mental sólida e integrada em discriminação. São algumas das pa- psiquiátricos e na substituição desse ciais, usuários dos hospitais psiquiátri- Fortaleza, que garanta atendimento lavras associadas aos manicômios. modelo por um modelo de atenção cos de Fortaleza estão sendo transferi- de qualidade e o acompanhamento Visando desmistificar a idéia de loucu- psicossocial”, observa. dos para uma Residência Terapêutica, com profissionais qualificados e ex- ra e inserir pessoas com transtornos Diferentemente de 30 anos atrás, onde será iniciando um processo de perientes. A rede de saúde mental é mentais na vida em comunidade, as Lutas Antimanicomiais já alcan- ressocialização e de resgate da cidada- basicamente baseada em hospitais surgiram as Lutas Antimanicomiais çaram uma longa lista de conquistas. nia. “As residências são casas de mo- psiquiátricos e CAPS. É necessário nos anos 70, que deram início à Re- A reformulação do modelo de Aten- radias para as pessoas que não tem diversificar. “Precisa haver mais forma Psiquiátrica, definida pela Lei ção à Saúde Mental, que prega o fim nenhum vinculo familiar, que são mo- residências terapêuticas, CAPS, am- 10216/2001 (Lei Delgado). Nela um da instituição hospitalar em prol de radoras de hospitais psiquiátricos há bulatórios de psiquiatria, centros de dos seus artigos diz que o Ministério uma Rede de Atenção Psicossocial, muito tempo” explica Raimunda. convivência, leitos de psiquiatria em Público deve ser comunicado até 72h estruturada em serviços abertos e Como resultado da política An- hospital geral”, argumenta a psiquia- todas as internações psiquiátricas, comunitários, é um bom exemplo timanicomial, entre 2005 e 2008, a tra Nara Brito.
  • 28. O Perfil O mundo de imaginação do poético homem sem razão mundo de imaginação do Parecem escolher permanecer na in- poético homem sem razão diferença, desviando o olhar quando Se antes as pessoas com confrontados. distúrbios mentais mantin- O que se percebe, como observa- ham-se isoladas da sociedade, esta dor oculto, é uma tensão pairando no lógica está sendo invertida. É comum ar. As pessoas fingem conviver com encontramos pessoas com transtor- naturalidade, com aquele homem nos mentais perambulando pelas em plena efervescência mental, mas ruas de Fortaleza. Abandonados, fu- fecham-se em si, a fim de evitar con- gitivos? Não se sabe! O certo é que frontos, talvez com seus medos, pre- esses personagens inusitados perme- conceitos ou temores. iam as entranhas da cidade, procla- Os que conhecem o jovem, que mando frases soltas, brigando com o dorme nos arredores do bairro, pro- inconsciente ou dando respostas aos tegido dos intempéries numa agência sofrimentos humanos. bancária das proximidades, afirmam: Aos freqüentadores da pracinha “Quando ele era bom (lúcido) sempre da Gentilândia, no Benfica, não deve falava do sonho de voltar pra família”. ter passado despercebida a presença Segundo Miltinho, homem conversa- de Nelson. Mesmo por trás de uma dor que trabalha vendendo lanches barba espessa, pele curtida pelo sol e numa das barracas da praça, Nelson vastos cabelos desgrenhados, perce- sempre dizia que iria mandar uma be-se um jovem, com pouco mais de carta para o programa do Gugu Lib- 24 anos, de rosto sofrido e olhos ex- erato para que o ajudassem a voltar pressivos. Vestido com farrapos e de para família. pés descalços, o antigo flanelinha, que Contudo, anos passaram, sonhos hoje vive de ajuda, passa seus dias per- passaram e com eles levaram a luci- correndo a praça e proferindo frases, dez de Nelson. O homem, meio bicho, para muitos, incompreensíveis meio criança, que hoje circula sem Com passos firmes, ele transita rumo pelas ruas do Benfica, encon- entre os passantes, buscando, com tra alegria mesmo nas coisas simples. olhar ávido, alguém que lhe dispense Brincar de ligar e desligar o medidor um pouco de atenção. Entretanto, os do poste, tornou-se seu passatempo. que passam, embora alimentem curi- Fazer ginástica no meio da praça e osidades e se indaguem quem é essa jogar bola com a garotada também pessoa? O que faz? Onde vive? Como faz parte das suas distrações. chegou a esse estágio de loucura? Entretanto, nem sempre os dias
  • 29. são bons, e nos momentos de “Ele era muito zeloso. Andava identidade preservada, diz que hando sem rumo, parando às Citando o poeta dos lou- raiva e agitação, descarregar todo arrumado, limpo”, acres- há 12 anos conhece Nelson e vezes para cantarolar alguma cos, Raul Seixas, diria que esse as energias batendo, socando centa uma das moças. Longe que em todos esses anos nunca música ou ensaiar alguns pas- homem, de um nome só, de in- ou chutando um outro poste, do mundo real há quase quatro apareceu nenhum familiar do sos. Foi num desses momentos disfarçável conotação, o tal Fil- torna-se a sua econômica e nem anos, o homem de pouco passa- colega. Entretanto, Nelson ga- de passeio que, na tentativa de ho de Campeão, Nelson, talvez tão saudável válvula de escape. do, que vive há 18 anos nas ruas, rante que sempre viveu em For- um diálogo, invadi o universo pense: “Enquanto você se es- Mas Miltinho garante: Ele não é cruza despercebido pelos olhos taleza e que os familiares moram imaginário de Nelson e travei força pra ser um sujeito normal violento, ele não mexe com nin- das autoridades e da sociedade nas proximidades. uma breve conversa. Desconfia- e fazer tudo igual. Eu do meu guém!”. mascarada de “boas intenções”. Querido por companheiros do, ele olhava, baixava a cabeça lado aprendendo a ser louco. Recordando o Nelson son- Tratando-se de Nelson, as dos tempos de sobriedade e aju- e mexia nos cabelos. Parecia es- Maluco total, na loucura real... E hador do passado, Miltinho e informações mesmo reais pare- dado por conhecidos, o homem tar vendo um ser de um mundo esse caminho que eu mesmo es- outras companheiras da labuta cem desencontradas. O amigo cabisbaixo, mas de sorriso largo distante do dele. Falou pouco, colhi, é tão fácil seguir, por não lembram como ele era diferente. flanelinha, que prefere manter a e vibrante, passa os dias camin- sorriu e se foi. ter onde ir...”.