O documento descreve a história de Rafael, um jovem de 21 anos que vende crack na comunidade da Vila Cazumba, em Fortaleza. Ele começou a vender drogas após a morte de seu tio Ricardo, que era um traficante respeitado na região. Atualmente Rafael é um dos principais vendedores de drogas da comunidade, porém enfrenta disputas constantes com traficantes de uma favela vizinha pelo controle do comércio ilegal de drogas.
O garoto por trás dos doze: a história de Rafael, traficante de drogas de 21 anos na periferia de Fortaleza
1. 09
Sumário
Ibh esed tions acil
euismod te ero con ulla
umsdsdfw cbnuma
02 Ibh esed tions acil
euismod te ero con ulla 05 Ibh esed tions acil
euismod te ero con ulla
Ibh nnnesed tions acil
nnneumod te ero con
ulla umsdsdfw cbnuma
12
umsdsdfw cbnuma umsdsdfw cbnuma
18 Ibh esed tions acil
euismod te ero con ulla
umsdsdfw cbnuma
25 Ibh esed tions acil
euismod te ero con ulla
umsdsdfw cbnuma
Ibh nnnesed tions acil
nnneumod te ero con
ulla umsdsdfw cbnuma
22 Ibh nnnesed tions acil
nnneumod te ero con
ulla umsdsdfw cbnuma
32
Ibh nnnesed tions acil
nnneumod te ero con
ulla umsdsdfw cbnuma
39 Ibh nnnesed tions acil
nnneumod te ero con
ulla umsdsdfw cbnuma
51
46 Ibh esed tions acil
euismod te ero con ulla
umsdsdfw cbnuma
64 Ibh esed tions acil
euismod te ero con ulla
umsdsdfw cbnuma
2. O garoto por trás dos doze 1
N
Por Arthur Pires
Foros de Chico Célio
egro, 1,70 m de altu- A comunidade da Vila Ca- Ricardo, que morreu há pouco
ra, bastante franzi- zumba, onde Rafael nasceu, mais de dois anos e era irmão
no, daqueles em que cresceu e vive até hoje, começou de seu pai, o criou como um fil-
as costelas saltam a surgir entre o fim da década ho, pois morava vizinho ao ga-
aos olhos e a magreza notória de 70 e o início dos anos 80, roto. Em periferias, é bastante
afunda até mesmo a maçã do quando o Tancredo Neves, fave- comum que famílias
rosto, Rafael (nome fictício) la vizinha e uma das maiores de de irmãos
não se deixa suplantar pela sua Fortaleza, já apresentava barra- morem próxi-
aparente fragilidade física. O cos apinhados, colados uns aos mas umas
jovem P.S.F.S., iniciais da ver- outros, que se expandiram rapi- das outras.
dadeira identidade de Rafael, damente para os lados de forma
aos 21 anos, já é um dos prin- inconsequente e não planejada.
cipais vendedores de droga da Dessa expansão do Grande Tan-
comunidade da Vila Cazumba, credo Neves surgiram comuni-
na zona sul de Fortaleza, próxi- dades à sua volta, como as fave-
mo à Cidade dos Funcionários. las do Gato Morto, do Tasso, do
Como de praxe, por sua “fun- Vila Verde e da Vila Cazumba.
ção” dentro da comunidade, É nessa realidade que vive
Rafael tem prestígio e impõe Rafael. O jovem é o terceiro de
respeito e medo, mesmo sem uma família de quatro irmãos,
querer, a muitos dos mora- criados por dona Aparecida,
dores. “Às vezes, noto que uns e sua mãe. Perdeu o pai, seu
outros me olham meio de rabo Abreu, ainda muito novo, aos
de olho2, com medo ou sei lá cinco anos, mas nem por isso
o quê”, diz Rafael. E completa: deixou de ter uma figura pater-
“Mas a maioria me trata bem, na que o inspirasse e influísse
na limpeza3”. na sua escolha de vida. Seu tio,
3. “Ele foi mesmo que um pai:
brigava comigo, me batia, mas
me ensinou muita coisa tam-
bém”, afirma o jovem. “Eu acho
que ele gostava também muito
de mim porque só tinha filha
mulher; eu era o sobrinho que
ele mais gostava, eu acho, né!”,
completa, saudoso.
Ricardo ‘Rolão’, como era
conhecido o tio de Rafael, foi
por muitos anos o principal
vendedor de drogas da Vila Ca-
zumba e um dos principais do
Grande Tancredo Neves. Não
queria que o sobrinho seguisse
o caminho do tráfico, mas tam-
bém não fazia esforço em es-
conder do ainda menino, e dos
outros familiares, que a ativi-
dade que sustentava a família
era o comércio de drogas. Pelo
contrário, a venda era feita a céu
aberto, na porta de casa. “Ele
era muito respeitado pelos mo-
radores aqui da Vila; não tinha
como esconder da gente que ele elo a ser seguido. “Eu via que só conta, “só vendia maconha, mas dependendo de circunstâncias tação particulares, em média,
arrepiava4, pois os caras vin- fazendo aquilo ele sustentava o que tava (sic) ganhando era específicas - como o tamanho 50% a 60% dos pacientes estão
ham aqui direto pegar (drogas)”, a família dele e ainda ajudava muito pouco, não dava quase da clientela e a quantidade de internados por dependência
explica Rafael, que desde cedo, a gente também”, explica. E foi nada pra mim”. Os papelotes mercadoria - a 400%, 500% do ao crack. Nas clínicas públicas,
através do exemplo de seu tio, viu exatamente após a morte de de maconha, ou as ‘balas’, como investido inicialmente: a venda esses índices beiram os 90%.
no tráfico de drogas um caminho ‘Rolão’, assassinado por trafi- são comumente chamadas, são de crack. Dessa forma, fica claro que para
real e perfeitamente possível de cantes do Tancredo Neves, que vendidos a dois reais cada, o O crack é um subproduto qualquer traficante que se utilize
ganhar dinheiro fácil. Rafael decidiu entrar de vez que gera uma receita muito da cocaína que está completa- da venda dessa droga, que custa
Como na grande maioria dos para a guerra. pequena para quem trafica. mente disseminado nas perife- cinco reais uma unidade, tem-se
casos, Rafael foi mais um garoto Segundo ele, não foi muito Percebendo que o lucro gerado rias brasileiras e avança tam- a certeza de usuários em poten-
de periferia que escolheu essa difícil arrumar um “canal”5 com a venda de maconha não bém, a passos largos, em direção cial aos montes. Outro fator que
sina espelhando-se em exemp- para comprar a droga em estava sendo suficiente, o jovem à classe média. Estudos e pes- faz ser moda entre os traficantes
los próximos à sua volta. No seu grande quantidade para, então, decidiu começar uma empre- quisas de diversos órgãos que a venda do crack é que o usuário
caso, o tio, mesmo sem nunca repassá-la. Contudo, prefere itada mais perigosa, porém com lidam com drogas têm mostra- dessa droga não se contenta
tê-lo incentivado, foi um mod- não revelar o local. No começo, lucros que chegam, em média, do que, nas clínicas de reabili- com apenas uma, pois esse sub-
4. produto da cocaína tem efeito plex, carro, dinheiro no banco”. droga com a mesma naturali- sentem inveja, relaciona-se pelo controle do comércio de
rápido e altamente viciante. “Já A maioria da clientela do jo- dade de um comerciante que bem com todos. Pelo menos no drogas na região. Há momen-
teve dia de maluco gastar mais vem é formada pelos próprios vende laranja na feira. O tráfico momento, os traficantes da co- tos, meses até, em que impera
de mil reais só aqui comigo; moradores, mas, segundo ele, na favela não pára. Segundo ele, munidade convivem num clima o armistício, mas é preciso
outros já deixaram televisão, os clientes mais lucrativos são o movimento é intenso durante respeitoso. O grande problema apenas uma “mancada”12 de
som de carro, DVD, relógio, anel os “playboy”8, que normal- todo o dia, inclusive no decor- mora ao lado. Mais especifi- um dos lados para a batalha
de prata, cordão de prata, de mente compram a droga em rer da madrugada. Para Rafael, camente, cruzando a Avenida recomeçar a pleno vapor. Essa
ouro, um monte de coisa”, conta grandes quantidades. Durante o pior de vender “pedra”10 é José Leon, que marca a divisão disputa já ocasionou várias
Rafael. a entrevista, feita no local onde ter que ficar acordado durante entre a Vila Cazumba e o Tan- vítimas fatais, entre elas o tio
O jovem diz, com sinceridade sempre “despacha”9, diver- toda a madrugada, “hora em credo Neves. Historicamente, de Rafael, Ricardo ‘Rolão’, que,
e desleixo, não se incomodar sos usuários surgiram, sem que aparecem os bruxos”11. os traficantes das duas comu- como dito anteriormente, foi
por estar vendendo uma droga cerimônia. O garoto negocia a Por conta dessa rotina, diz nidades vivem numa guerra morto por traficantes do Tan-
com alto poder destrutivo ao que acorda somente depois do credo Neves. Fogos de artifício
usuário: “Nem penso nisso, se meio-dia para “trabalhar”. rasgam o céu da região quando
o cara vem até aqui pegar, é O jovem, obviamente, não há a morte de algum traficante,
porque ele quer; só estou fazen- é o único traficante da Vila Ca- seja da Vila Cazumba, seja do
do o meu adianto”6. Uma vez zumba. Mas, como gosta de Tancredo Neves. Os fogos são
por semana, vai até seu “canal” dizer, “é o que está arrepiando uma espécie de ritual que eles
e adquire uma nova remessa mais na área”, orgulha-se. No incorporaram a essa guerra
de crack. A quantidade varia entanto, diz que os outros não insana. “Já perdi uns cama-
de uma semana para outra, de- radas13, mas é isso mesmo”,
pendendo do quanto ainda tem resigna-se Rafael, num misto
disponível no estoque, mas em de frieza e tentativa de apagar
média, compra semanalmente da memória as lembranças dos
entre 40g e 50g da droga. Para amigo perdidos.
clarear as ideias, 5g de crack Assim como com os tra-
são vendidos, em média, a 120 ficantes do Tancredo Neves, o
reais. Quando comprada em relacionamento com a polícia
grande quantidade, esse valor é difícil. Rafael conta que a cor-
diminui para 100 reais. Portan- poração sabe que o comércio de
to, o jovem Rafael, que estudou drogas ocorre na favela, e por
até o 1º ano do Ensino Médio e conta disso, “come o troco”14
nunca trabalhou com outra coi- de muitos traficantes. Aquele
sa que não fosse o tráfico de dro- que não paga o suborno aos
gas, administra, por mês, uma policias, corre seriamente o ris-
quantia que varia entre 3.200 e co de ser preso e ter seu negó-
4.000 reais. Muito? Rafael solta cio fechado, derrubado. “Se não
uma espontânea gargalhada, se pagar o troco aos homem15
recompõe e esclarece que não: (sic), a casa cai”16, diz o jo-
“É uma micharia7! Tem doze lá vem. Os policiais passam no dia
no Tancredo que tem é casa du- combinado e saem recolhendo
5. os subornos; em contrapartida, ele tem a ajudado nas despe- vos que os fazem continuar na bons aqui pra mim”, confessa. que muitos dos que exercem a
fazem vistas grossas ao comér- sas domésticas, apesar de não atividade ilícita, pois, após con- Sorridente, simpático e brin- atividade ilegal do tráfico não
cio de drogas que acontece co- morar mais com ela. Hoje, tem seguir esse prestígio, é muito calhão, o jovem é o contrário do a fazem por escolha, como se
tidianamente na favela. seu próprio barraco, que divide difícil se desvincular dele. “As estereótipo do traficante, aque- fosse uma entre ser médico, jor-
Quando indagado se também com suas “namoradas”. Fenôme- cumades17 só faltam pular em le de fisionomia carrancuda, au- nalista ou traficante, mas por
faz uso da droga que vende, se no comum a essas comunidades cima de mim”, orgulha-se Rafael, toritário, violento e prepotente. uma equação muito simples: o
surpreende e é enfático: “Tu é é o poder de sedução que os tra- abrindo um sorriso sarcástico e A atividade que exerce ainda meio em que você nasce aliado
doido? Traficante que usa pe- ficantes exercem nas garotas da com um ar pouco modesto. não o embruteceu tampouco com a falta de oportunidades de
dra, tudo o que ganha vai só pra periferia. Para elas, namorar um Entretanto, antes de ser um o fez perder o espírito de ga- conhecer outro mundo, senão
alimentar o vicío”. Mas admite traficante é sinônimo de poder, traficante de drogas, Rafael é roto. Durante a entrevista, fez aquele em que nasceu. Não que
que fuma maconha e, “de vez de status dentro da comuni- um jovem de 21 anos e, como várias brincadeiras com quem Rafael seja um exemplo de vida,
em quando, no fim de semana”, dade. Semelhante encantamen- qualquer outro, tem seus gostos, passava pelo local. As estatísti- não que se Rafael tivesse nasci-
cheira cocaína. O fato gritante é to ocorre com as crianças, que suas vontades e seus amigos, cas deterministas provam que do numa família de classe média
que a maioria esmagadora dos vêem na figura do traficante um com quem gosta de “jogar fute- comumente a vida no tráfico teria um futuro promissor, mas
jovens de periferia recorre às exemplo a ser espelhado, tendo bol e tomar umas geladas”18. aponta para dois caminhos: a Rafael nos ensina, mesmo sem
drogas pela facilidade de acesso em vista que aqueles estão sem- Torce para o Flamengo e para o morte ou a prisão. Rafael parece querer, a ter sempre um sorriso
que encontram. pre com roupas novas e tênis de Fortaleza. Não vai aos jogos do não pensar muito nisso; vai le- no rosto, espírito de jovialidade
Rafael conta que a mãe, dona marca, relógios caros etc. Essa seu time porque a atividade não vando a vida como um garoto e, e atitude perante desafios, não
Aparecida, sabe da atividade idolatria que se deposita sobre o permite. “Os jogos são sempre sem saber, como gente grande. importa em que situação nos
dele, mas não o recrimina, pois eles é também um dos moti- domingo ou quarta, e aí são dias Ele é um exemplo clássico de encontramos.
6. Glossário da periferia
1_Doze Gíria para traficante, que
advém do Art.12 do Código Penal
brasileiro que versa sobre tráfico de
drogas
2_Olhar de rabo de olho Olhar
desconfiado
3_Tratar na limpeza Tratar bem, tra-
tar com educação, com respeito
4_Arrepiar Traficar, vender bem,
vender bastante
5_Canal Local (ou pessoa) onde os
traficantes compram a droga em
grande quantidade para revender
6_Adianto Serviço, trabalho
7_Micharia Pouco dinheiro, quantia
insuficiente, pequena quantidade
8_Playboy Jovens de classe média
9_Despachar Vender, negociar
10_Pedra Crack, tem essa gíria porque
é vendida em pedrinhas envoltas em
sacos plásticos
“Rafael nos ensina, 11_Bruxos Viciados crônicos, geral-
mesmo sem querer, mente os mais impulsivos pela droga
a ter sempre um 12_Mancada Vacilo, erro
sorriso no rosto, es- 13_Camaradas Amigos, parceiros
pírito de jovialidade
e atitude perante 14_Comer o troco Subornar
desafios, não impor- 15_Homem Policial
ta em que situação 16_A casa cair Ter seu negócio fecha-
nos encontramos” do e/ou ir para a prisão
17_Cumade Mulher, garota
18_Gelada cerveja
7. Histórias de Beco
quando a poeira assenta, entrevemos rostos,
punhos e corações
Reportagem e ilustrações por May Araújo
8. e a grande maioria: confecções costureira, destinada a cruzar
em jeans e as chamadas “mod- tantas vezes, anos depois, o co-
inhas”, blusas, saias e vestidos mércio erguido sobre o terreno
em malha fria ou radiosa. negociado àquele dia.
Não recordo a primeira vez A tarde fortalezense é
em que estive no Beco. Provavel- quente e abafada. Os meses ini-
mente me deveria guiar o pun- ciais do ano trazem as chuvas
ho seguro de minha mãe, apres- de São José e, por isso, o bafo
sada, cruzando as vielas de morno e impróprio do asfalto
tecidos; meus olhinhos infantis entope-me as narinas. Compro
decerto turvos da correria e de um lanche qualquer no Shop-
Pesquisava a relação entre obstáculos inúmeros: roupas, ping Metrô e cruzo a rua,
programas policiais, ditos pop- calçados, pessoas. Barulho, intrigante comparar o
ularescos, e seus espectadores multidão, cores rompendo o quarteirão do shopping
que se reúnem despretensiosa- gris bolorento dos boxes e um com as fotografias da
mente ao redor de tvs em bares único norte: a destra materna. hemeroteca: eram meados
quando, tão aleatoriamente O Beco como é conhecido dos anos 80 quando ali hab-
quanto eles, fui levada a revisi- hoje nasceu junto comigo. Não a itava As Brasileiras. Enquanto
tar, com olhos de pesquisadora, estrutura, inaugurada em 1991, Hebe Camargo estrelava, sorri-
o espaço que sempre cruzei mas a idéia, a decisão primeira: dente, os cartazes publicitários
desde menina: o Beco da Poe- à tarde do dia 4 de novembro de da grande loja de departamen-
ira. Adentrei-o e ali me quis es- 1987, na sede do Banco do Nor- tos, o verdadeiro beco subsis-
tabelecer. Mudei de tema. deste, a prefeita em exercício, tia do outro lado da rua, a con-
O Centro Comercial de Maria Luiza Fontenele, se reunia tradição estampada, barracos
Pequenos Negócios ou Centro com sua equipe e acertava a re- de madeira e alvenaria forma-
de Pequenos Negócios de Ven- forma do terreno à época con- vam becos estreitos, abrigos de
das Ambulantes, chama-se, na hecido por beco da poeira para 15 famílias e sustento de out-
verdade, Beco da Poeira, situa- receber o “feirão popular”, ain-
do entre as praças da Lagoinha da de frutas e verduras. Horas
e José de Alencar, no centro depois, na madrugada daquele
de Fortaleza. Um dos maiores, mesmo dia, eu nasci – Mayara
senão o maior centro de comér- Carolinne Beserra de Araújo,
cio popular do Estado. As três filha de funcionário público e
grandes tendas em ferro e ami-
anto abrigam em torno de 2.050
boxes, organizados em 22 es-
treitas galerias, subdividas por
gêneros comercializados: fru-
tas e verduras, eletrônicos, mi-
udezas e importados, calçados
9. prefeita
senhora
esse mes a senhora vai pagar
ros 52 “locatários”: desem- pessoas tornam-se não mais modo, mas não se pode ig-
pregados donos de biroscas que vultos e as conversas, norar isso. Como gosto de ver
imundas; cafetinas, gigolôs, fórmulas repetidas – Quanto o jornalismo? Eu vou dizer:
prostitutas velhas e muito custa? Que cores tem? Que jornalismo, para mim, é a arte
novas; vendedores de lanche, tamanhos? Tem desconto? de fazer amigos. Os teóricos
frutas, verduras e carnes, cu- Qualquer comportamento já diziam como é preciosa e
jos restos – vísceras, bagaços, que fuja a essa dinâmica é tênue a relação que criamos
miúdos – tomavam o chão encarado com estranheza. com as fontes, repare: chego
das vielas. Uma latrina em Minha presença inquisidora, em um lugar, apresento-me,
forma de tosco labirinto a céu curiosa e relaxada é quase digo ser de uma empresa
aberto. O beco da poeira era o ofensiva. Isso era o que eu jornalística ou de alguma
lar dos excluídos, dos descui- pensava antes de conhecer universidade de comunica-
distas, bêbados, putas. Sob a os meus primeiros amigos de ção, digo que vou fazer uma
névoa da poeira habitavam Beco. reportagem e o entrevistado
os esquecidos. Só quem escreve assim, diz-me, às vezes, muito mais
Às duas horas de uma tar- em primeira pessoa, sabe o do que preciso saber sobre
de quente em que há pouco que é submeter-se a esses sua vida. Baseado em que?
chovera entrar no Beco re- relatos. Mas quem nunca es- Um crachá? Uma promessa
quer antes certo preparo psi- creveu? Diários, cartas de de reportagem? Que louca
cológico para a experiência amor, quem nunca contou é essa relação de extrema
sensorial de uma brusca mu- um segredo? Falar sozinho confiança entre estranhos e
dança de ambiente, é quase é tão mais fácil por que até que maravilhosa ao mesmo
como ser trancado em um nosso idioma - honesto - ex- tempo, sobretudo quando
fosso, um calabouço de teto plica que dizer é sinônimo ao final de uma conversa de,
rebaixado, quente e úmido. de afirmar e então quando se sabe-se lá, 15, 20 minutos,
Se o espaço urbano por si diz algo, para alguém ou um fazemos amigos. Por que eu
só possui tempo e espaço papel que seja, é como con- faço jornalismo? Por paixão
diferenciados, no Beco, am- firmar, tornar tudo verdade. a essa bendita sensação de
bos sobrem nova subversão: Dói e amedronta expor assim fazer amigos pela confiança,
há outra correria, outros sentimentos meus e de out- pela honestidade, ainda que
modos, o tempo passa mais ras pessoas, mas é para isso concom itantemente
depressa, a passada aperta que os jornalistas estão no não saiba quase nada sobre
e os olhos correm vertigi- mundo, não? Para expor. Não este novo conhecido; por
nosos. É dessa forma que as gosto de ver as coisas deste poder chegar às fontes não
10. como certos jornalistinhas entes convivendo embaixo
que agem como se as pessoas daquele amontoado de ami-
tivessem a obrigação de lhes anto. Deixe-me começar do
ceder informações, mas com começo: estava seguindo
uma tranqüilidade curiosa de duas atendentes de plano de
quem quer, quando possível, saúde que entravam no Beco
ainda que brega, parodiar conversando sobre namora-
Roberto Carlos e perguntar: dos, vizinhas, coisas quais-
“Como vai você?” Se o fíga- quer. Interessei-me pela con-
do de alguns jornalistas não versa e logo estava em um
fosse todos os dias comido corredor ainda desconhe-
pelo tempo, feito Prometeu , cido pra mim, era a principio
conheço muitos que adorari- estreito e depois mais largo,
am pôr isto em prática. com uma lanchonete, cadei-
Voltando aos meus ami- ras e mesas ao fundo. Pensei:
gos de Beco, estes me mostr- “perfeito para desenhar, não
aram quão grande é aquele precisarei tomar o lugar de
lugar sem que eu precisasse ninguém e vou poder agir
caminhar pelos corredores, discretamente”. Sentei-me,
levaram-me a pensar como retirei lápis e borrão e me
são tantas pessoas difer- pus a observar o cenário. À
Sob a nevoa da poeira,
a multidao de sombras se mexe
esquerda, duas vendedoras a vendedora absorta quando nada, não havia o que temer bros. Todas as vezes que fazia senho que você fez?”
conversavam, uma delas ol- as coisas começaram a mudar: e estava ansiosa para saber este trajeto, voltava ao box com Estava desmoronada a mu-
hava o chão absorta, sentada notei uma certa movimenta- como acabaria aquilo, quando uma novidade, em pouco tem- ralha do silêncio, da impessoal-
em uma das pernas, trazia a ção curiosa em torno de mim, percebessem que os estava re- po os relojoeiros já também idade e, a partir dali, decantara
bolsa à tira-colo, onde pudesse os vendedores cochichavam produzindo. me olhavam curiosos, todos a poeira do Beco: os rostos não
ver; mais à frente, mais duas entre si e me olhavam descon- Aconteceu logo, em cerca sabiam o que se passava, mas eram mais vultos, mas pessoas,
vendedoras conversavam; à fiados. Não demorou para que de quinze minutos, uma das ninguém dizia nada, até que a com suas histórias, tempera-
direita, um vendedor loiro ol- eu entendesse: estavam com moças levantou-se várias vez- mesma vendedora levantou-se mentos, humores, e quanto
hava o movimento e à frente medo de eu estar desenhando es, caminhava para além da uma última vez, olhou-me por humor! Logo fui incluída, ver-
três moços concentrados, con- os modelos de suas roupas. minha cadeira e me olhava, cima dos meus ombros e per- dadeira algazarra em torno
sertavam relógios. Rabiscava Decidi simplesmente não fazer eu a percebia sobre meus om- guntou: “posso ver o outro de- dos desenhos, todos querendo
11. se reconhecer: “ah, mas eu não obter algumas repostas caiu do e, àquele dia, um gravador.
sou feio assim!”, disse irmão por terra, foi nocauteado pela Com a espessa poeira da es-
Toninho, “olha que essa aqui é brincadeira dos rabiscos, e logo tranheza decantada, surgiram
fulana!”, “esse é ciclano!”... E me lá estava eu entrevistando e rostos. Descobri que estava
mostraram o desenho da Paiz- sendo entrevistada: o que você no corredor dos evangélicos
inha colado no alto da coluna. faz? De onde é? Você compra e que ali, naquela vizinhança,
Uma boneca de longos cabelos, no Beco? E ainda me quiseram eram todos amigos há três ou
desenhada a lápis e com os diz- pagar pelo desenho: R$ 2,00! cinco anos. Rita de Cássia é a
eres: “Procura-se viva ou mor- Recusei, óbvio. Tão mais val- mais nova, tem 18 anos, tra-
ta, recompensa R$ 0,50”. Ah, iosa fora aquela experiência. balha pela manhã até a tarde
mas estava errado uma boneca Dias depois retornei para, e estuda à noite, prestará ves-
tão feia, “Manda chamar a Paiz- de fato, escrever minha report- tibular para Serviço Social. Rita
inha que a menina desenhista agem. E eu que me dizia, com foi a primeira que se dispôs a
vai ter que desenhar ela!” Man- ares de pesquisadora: “vou falar. “Desenrolada”, a pequena
daram chamar Maria da Paz. apreender as performances contou-me que está ali há três
Enquanto desenhava a moça dos vendedores”, conclui que anos, cuidando do Box da mãe.
dos longos cabelos loiros e cac- só uma pessoa foi performer Os primeiros dias de vendedo-
heados, de repente, aquele es- ali: eu mesma. Se havia alguma ra do Beco foram um tanto difí-
forço a que nós jornalistas nos intervenção, era minha, com ceis, era tímida, envergonhada
submetemos certas vezes para um lápis, um borrão amarela- e, como Rita mesmo diz, para
A vendedora absorta, ia
mas a bolsa do dinheiro, essa trazia presa ao corpo
trabalhar ali é preciso “swing”, se sentem seguros no Beco, além das taxas de manuten- os inseparáveis de um Beco es- queríamos ser reconhecidos,
molejo. Hoje fez amigos, de- os malandros da praça volta e ção quitadas mensalmente, quecido pelas autoridades. entende?”, disse-me João Pau-
clara que aquela é a parte mais meia estão por lá, mas pouco se os vendedores se submetem Ainda que o Beco da Poe- lo, o Loiro, questionando-me
divertida do Beco, gosta do que escuta de furtos. Quem assusta a péssimas condições de tra- ira seja um diferencial da capi- quantas vezes eu tinha visto
faz e prefere estar ali a vender mesmo é o “rapa” em busca de balho. A estrutura é precária, já tal cearense (tanto que certos alguma propaganda do Beco
em feiras livres, onde se sen- CDs piratas. diversas vezes condenada pela turistas chegam a pagar guias da Poeira na televisão. Jamais,
tia insegura e o trabalho era Mas nem tudo são flores, se vigilância sanitária. Em tem- para visitá-lo nos meses de ja- Loiro, eu mesma nunca vi. E
mais pesado. Quanto à segu- o Beco hoje representa oportu- pos de chuva como os de agora, neiro e julho), os permission- apesar disso, como ele mesmo
rança, não só Rita como os out- nidade para centenas de per- a água imunda dos banheiros ários reclamam que não há disse, possivelmente mais da
ros vendedores que estavam missionários, o preço que se volta pelos ralos. Fedentina, nenhum tipo de divulgação por metade das lojas de confecção
por perto confirmaram que paga por ela não é barato: para calor e sujeira são companheir- parte da prefeitura. “Nós só de shoppins da região Norte
12. são abastecidas com roupas “made in” rando e saindo de suas galerias, vendil- a vida a todo custo. Os vendedores ca- mercadoria e recebia em troca, muitas
Beco da Poeira. A verdade é que ali hões que alimentam o comercio infor- dastrados do Beco não divergem dos vezes, desprezo. Ali o “não” é comum,
se lucra por quantidade e os maiores mal e, por meio dele, dão de comer a si informais da praça, aproximam-se, mas não frustra os vendedores, a con-
compradores descem aos montes na mesmos e a suas famílias. O Beco, saído oferecem, insistem, “chegam junto” do corrência mora ao lado e por isso a ne-
rodoviária fortalezense e têm outros das entranhas da diversidade de uma freguês, cada passante é um potencial cessidade de manter certa disposição
sotaques. praça pulsante e viva como sempre fora consumidor. Loiro é um dos que con- constante, apesar do cansaço, e o mais
João Paulo de Souza, o Loirinho, tem a José de Alencar – que se reinventa e firma a tese, contou-me que, em seu importante, como disse Rita de Cássia,
23 anos e deixou o trabalho na roça, em repovoa, apesar das tentativas higieni- primeiro dia de trabalho, acostumado manter o jogo de cintura. Se não há pro-
Morrinhos (município a 208 quilômet- stas das gestões municipais de varrer com a vida difícil de ambulante, chegou vador, com dois panos, faz-se uma cor-
ros da capital), sua cidade natal, pra “vagabundos” e ambulantes –, herdou “arrepiando”: chamava o cliente, anun- tina; se não cabe, aperta; se a perna da
tentar a vida em Fortaleza. Foi camelô dela a avidez de quem precisa ganhar ciava os produtos no gogó, oferecia a calça é grande, uma dobra, um ponto e
na Washington Soares e outras aveni-
das da cidade, vendia calculadoras, con-
troles remotos, mas a vida de ambulan-
te também não rendia. Loiro já pensava
menina Rita: pra vender no Beco, tem de ter
em voltar pra roça quando um primo,
fabricante de confecções, convidou-lhe
jogo de cintura
para trabalhar no Beco. Atualmente,
João cuida do Box do primo há 5 anos
e afirma – com segurança – que se lhe tudo está resolvido. O Beco da Poeira é
oferecessem um emprego na Otoch ou o mercado do “jeitinho brasileiro”, con-
na C&A em pleno Iguatemi, recusaria stituído não só pelos permissionários,
prontamente. mas por marmiteiros, tapioqueiros,
Muitas histórias se entrecruzam, tan- cafezeiras – nome popularmente dado
to quanto os corredores do complexo, a às mulheres vendedoras de cafezinho
vizinhança, os grupos a cada corredor -, malandros, catadores, artistas. Nessa
fazem da grande feira uma Fortaleza dinâmica, entre as galerias, além dos
em proporção menor, com bairros, ruas, visitantes, dezenas de isopores, tab-
esquinas, quarteirões, casas e vizinhos. uleiros e até bicicletas desafiam a estre-
No Beco, há engarrafamento, polícia, iteza dos caminhos, ganhando a vida à
prefeito, ele consiste, portanto, em mais custa do ganha-pão de outros tantos.
um núcleo organizado dentro da cidade Essa é a vida de Francisco Antonio
que absorveu dela suas característi- da Silva, 22 anos, mais conhecido como
cas. E assim como em uma cidade, não Pastel-menino. Francisco recebeu esse
vivem do Beco somente os permission- apelido do oficio de vendedor de pas-
ários, mas outros tantos, que ao redor tel e suco, ele percorre aquelas galerias
da dinâmica da feira inauguram outro há 5 anos, oferecendo pastel e espe-
movimento, são dezenas de ambulantes rando ansioso alguém gritar “Pastel,
às portas do Centro Comercial, ou ent- menino!”, indicação de mais um cliente
garantido. Pastel-menino mora na Praia
13. do Futuro, acorda 5 e meia da manhã e voamento, a não ser que as pessoas que do o novo Beco da Poeira.
deixa o serviço às 5, 6 da tarde, quando as habitam hoje não sejam considera- A esperança virou decep-
o Beco fecha as portas. Ao contrário do das dignas, merecedoras, de estar ali. ção: meses depois, a obra
que, em geral, se pensa, Francisco não é Fica a pergunta: quem, afinal, os ge- foi embargada e o din-
autônomo nem tem a liberdade de en- stores municipais querem ver povoar heiro, milhões aliás, desa-
trar e aproveitar o movimento do Beco as praças do Centro? pareceu.
como bem entenda, ele é contratado Fundado em 1991, na gestão do pre- Agora os jornais anun-
para vender os pasteis e, para que ele feito Juracy Magalhães, o Centro Com- ciam: “De zero a 10 está
possa caminhar pelos corredores, seu ercial de Pequenos Negócios fora antes em nível 8 o fechamento
patrão paga mensalmente uma certa um projeto do programa de revitaliza- da aquisição da antiga te-
quantia ao sindicato, Pastel-menino
Loro de Morrinhos :
voce ja viu propaganda do Beco na TV?
não sabe quanto. ção do centro, iniciado por Maria Luiza celagem Tomaz Pompeu,
Manter em ordem a venda ambu- Fontenele. Atualmente, na gestão da na avenida do Impera-
lante, contudo, não é uma novidade do prefeita Luizianne Lins, mais uma ten- dor, para ser a futura
sindicato. Na verdade, a reorganização tativa é feita, desta vez motivada pela sede do atual mercado
do centro de Fortaleza, ou revitalização, construção da Estação Lagoinha do do Beco da Poeira” . No-
foi meta de vários gestores fortalezens- Metrofor – projeto de metrô de Fortale- vamente, expectativa e
es. Chega a ser engraçada a contradição za -, cuja sede será onde hoje está situa- desconfiança, esperança
de batizar como revitalização o ato de do o Beco da Poeira. Segundo prefeitura e descrença mesclam-se
expulsar ambulantes do centro. Perce- e governo do Estado até o fim deste ano entre os permissionári-
ba: revitalizar não é restaurar, repor a a obra necessita estar pronta, gerando os. A tecelagem, avaliada
vida? E quem disse que as praças estão novos sentimentos de apreensão e ex- em 7,4 milhões de reais,
desabitadas, vazias? A praça ferve do pectativas nos permissionários do Cen- dispõe de muito mais es-
movimento de passantes, que param tro Comercial, que se preparam, depois paço do que o “esquele-
em círculo para ver os artistas ganha- de 18 anos no mesmo estabelecimento, to” erguido em 2004,
rem a vida com malabares, cantorias e para uma provável mudança definitiva. que atualmente, para
palhaçadas. Seus bancos estão reple- Pouco antes, em 2004, esta apreen- receber o Beco da Poeira
tos de pessoas, desde consumidores são e expectativa de mudança fora necessitaria do terreno
do centro, cansados da caminhada, até plantada uma primeira vez no seio dos de mais 10 a 13 imóveis
desempregados, ambulantes, boêmios vendedores. Um terreno fora comprado do entorno, segundo José
e prostitutas. As praças do centro não num acordo entre prefeitura, sindicato Nunes Passos, secretário
estão vazias para precisarem de repo- e construtora para que fosse inaugura-
14. do Centro. A mudança para a Aveni- ou sem Beco, continuará vendendo
da do Imperador gera especulações, seu pastel, já que no Centro não fal-
os vendedores questionam se será, ta freguesia, mas sente por outros
de fato, amplo e organizado como vendedores que não trabalham no
prometem. “Vai ter ar-condicionado, mesmo “esquema” que ele. “A gente
praça de alimentação...”, comentou não sabe se eles vão deixar o pessoal
Loiro, empolgado, seguido de um andar lá dentro, nem se vão poder
“Menos, Loiro, menos!”, do irmão colocar barraca do lado de fora, vai
Toninho. Mas o que os permission- que tem lanchonete lá dentro aí a
ários reivindicam não passa de gente fica sem saber como fazer...”,
condições melhores de trabalho: admite Francisco.
boa instalação elétrica, espaço mais A tarde cai tão rápido quanto
amplo entre os boxes, um sistema de chega. Será que, na tecelagem fecha-
ventilação adequado, banheiros dig- da, será possível distinguir o dia da
nos. Quanto aos ambulantes do Beco, noite, como debaixo dessas tendas?
como Pastel-menino, a situação é um É hora de despedir-me com uma úl-
tanto mais preocupante, já que eles tima pergunta: o que levam desse
não sabem se, em uma nova estru- lugar, caso realmente se mudem? Do
tura, inaugurada como exemplo da que terão saudades? Rita se adianta
eficiência da aliança prefeitura-gov- e diz “De nada, não tenho apego por
erno do Estado, haverá a possibili- esse lugar.”, mas concorda, aliás, to-
dade de ambulantes circulando nas dos concordam, de certa forma, com
galerias novinhas. Francisco está um a resposta de Loiro: “Vou sentir falta
pouco mais tranqüilo por que, com dos meus amigos, por que lá a escol-
15. ha dos boxes vai ser por sorteio, E me vou embora, às 17:40 da
então não sei se a gente vai ficar tarde quente e abafada, cru-
junto, é muito difícil. Os meninos zando as vielas de verdadeiros
aqui já são meus amigos dentro contabilistas a calcular os lucros
e fora do Beco, a gente é tudo e a recontar estoques no fim de
evangélico, então vai pra igreja mais um dia de batalha, alguns
junto, sai junto e lá eu não sei fecham as malas para guardá-
como vai ser a nova vizinhança.” las nos boxes minúsculos, out-
Quando penso que irmão ros para levá-las à praça da Sé
Toninho, Loiro, Rita de Cássia, e lá enfrentar a feira livre que
Paizinha, Pastel-menino, e out- já já começa e vira a noite até
ros tantos, carinhosos e acolhe- o raiar de um novo dia, em que
dores, não são sequer um décimo todas aquelas pessoas, histórias
da população da grande feira, re- de vida, se reúnem novamente.
spiro fundo e entrevejo na poe- Deixo o Beco com a sensação de
ira um caminho longo de outros acompanhar uma história em
vultos que se tornarão rostos, marcha, mas, desta vez, não na
pessoas, punhos firmes como os margem, mas completamente
de minha mãe, a me guiar por imersa no rio da vida. E vou-me
aquelas galerias, em encontros feliz, plena de imagens, relatos,
sucessivos de histórias de vida. grávida de tudo.
17. N
o dia em que foi marido fora encontrado ar- à direita, encarando a vidra-
embora para sem- quejando sua última angús- ça. Antonio fizera questão de
pre da casa, Violeta tia era onde Violeta Sanches mandar construir sete arcos
Sanches acordou dormia todas as noites desde em ambas as laterais e três
cedo, como era de costume, que entrara na casa, e o espe- defronte, em cada pavimento
e apressou-se em verificar lho do toucador, presente da – dizia que seriam para cada
a caixa de correspondência. sogra, estava no mesmo lugar um dos sete filhos que viriam
Bateu com o sino na grade da há treze anos, como tudo lá ao mundo. Mesmo sem ol-
cama quatro vezes; como a estava. Por isso, não era de har pra eles, Violeta Sanches
criada não acudisse, resolveu se espantar que a vizinhança os via todas as manhãs, ao
descer sozinha ao jardim. Era chamasse o imponente e sin- acordar.
a segunda vez em treze anos gular casarão de “a casa mal Chamava-se Alísio o filho,
que lhe ocorria levantar-se da assombrada”. Mas Violeta tinha o nome do bisavô por-
cama, fazer a toalete e sair da Sanches preferia associá-lo tuguês. Contava três anos
casa sem que os empregados a uma espécie de memorial, de idade quando Antonio
ou o marido estivessem por um tributo ao que se passou: o trouxera à casa, embora
perto. A primeira havia sido ela e o marido recém casa- as freiras do orfanato não
um mês depois do acidente, dos; ela entrevada na cadeira soubessem ao certo a data do
e ela nunca mais a esqueceu, de rodas entrando na casa nascimento. Era um rapaz de
embora julgasse o contrário: pela primeira vez, subindo de feições indecisas a andar pe-
caíra da cama como se fosse carro a enorme rampa; os fil- los jardins, sempre com um
uma criança de mãe descui- hos que nunca teriam; o filho livro na mão. Àquela época
dada, tombara de bruços que tiveram e perderam. pendia-lhe um buçozinho
amolecendo um dente. O dia Do lugar de onde vis- que o pai insistia em chamar
estava claro, havia um vento lumbrava o amanhecer, não de bigode. Gostava de es-
seco adentrando os cômodos, chegava a confrontar os raios crever cartas, mas ninguém
diferente da aragem úmida solares, antes os entrevia tol- conseguira descobrir quem
que percorre toda cidade li- dados pela gaze das cortinas era o destinatário. “Nosso
torânea. Ela mesma pensava e impelidos pelo concreto dos filho já é homem”, Antonio
que algo estranho acontecia, arcos. Os arcos da varanda, segredou a Violeta Sanches,
a começar pela lembrança do estes sim, eram a primeira um dia em que entrara no
acidente. Havia tempo Vio- visão de cada dia. Adorme- quarto de Alísio sem bater à
leta Sanches não pensava no cia olhando para o teto, como porta. Levantava cedo e ia a
passado, achava que tivesse se ali houvesse um enigma, escola, ao retornar almoçava
enterrado as lembranças o talhe reto, e nessa posição e permanecia nos jardins ou
com o marido morto, mas, despertava, nunca inclinava na varanda até o anoitecer.
agora quando aconteceria o a cabeça. A janela do quarto Não saía de casa sem que es-
improvável, ela se detinha. dava para a confluência entre tivesse sozinho, não se tinha
O quarto não mudara dois dos sete arcos da varan- notícias de amizades suas. O
em nada depois que Anto- da lateral, de modo que só pai oferecia-lhe carona até
nio morrera. A cama onde o eram vistos por quem virasse o colégio, mas ele recusava
18. enquanto podia: “São só alguns começo, tinha compaixão do deixando as pessoas que vivem ensaiada. Evitariam encontros
passos”. menino de olhos atentos, sem juntas parecidas, mas pela ma- casuais no mundo que era a
Violeta Sanches esforçou-se família nem passado. Depois, neira como a olhava. Houve um casa.
para amá-lo como se tivesse nos primórdios da adolescên- tempo em que até mesmo a pre- Uma tarde, enquanto as
nascido dela, como Antonio o cia, Alísio cada vez mais lhe fig- sença dele à mesa gerava-lhe criadas ajudavam-na durante
amava. A bem da verdade, o urava um estranho, não por ele incômodo. Foi então que, num o banho, ouviu alguém camin-
sentimento era recíproco, mãe ser totalmente imune às mar- acordo tácito, ambos passaram har no quarto. Tinha a audição
e filho o compreendiam. No cas da convivência, que acaba do esforço cínico à displicência bastante apurada, percebia a
mínima intensidade de um som, inabilmente e girou a maçaneta. As No dia seguinte, enquanto toma-
fosse numa conversa barrada por moças que a banhavam soltaram um va ar defronte à entrada principal,
paredes, fosse numa nota musical grito de horror ao ver Alísio de pé, Violeta Sanches escutou novamente
destoante. Pensou que Antonio es- no limiar. Violeta Sanches apenas o os passos da tarde anterior, des-
tivesse no quarto, mas lembrou-se encarou, enxergando nele um sem- sa vez vinham de cima. Olhou em
de que o marido havia ido ao ar- blante de serenidade. Pediu às em- direção ao céu e viu Alísio sobre o
mazém fazia pouco tempo. Os pas- pregadas que jamais comentassem teto jardim. “Ele não deveria estar
sos aproximavam-se da porta, não o episódio. À noite, durante o jantar, na escola?” – pensou sem tirar os
era Antonio, ela estendeu o braço Alísio não sentou-se à mesa. olhos do rapaz. Depois, não pensou
19. em mais nada, revelou para si que estava apenas escondida. – um mau agouro. Tudo na casa
aquela só podia ser a imagem de Ao cabo de cinco minutos, recendia ao que vivera e o que
um anjo. Cartas de amor espalha- que para Violeta Sanches signifi- estava ainda por ser vivido, mas
vam-se sobre o terreno, levadas caram mais de dez anos, a criada fora abortado. Nesse instante a
pelo vento, pareciam brotar dos atendeu-lhe o chamado. “Leve- verdade tornou-se clara. Era
pés de Alísio, todas endereçadas me até o jardim”, ordenou. “Mas preciso romper.
a ela. “São só alguns passos, min- assim, senhora?”, espantou-se a Subiu a rampa com a força
ha amada” – disse ele com a voz criada. “Imediatamente”, disse dos próprios braços até chegar
mansa, olhando a como nunca, e sem hesitar. Cruzou todo o pa- ao teto jardim. Lançou um úl-
atirou-se ao chão. vimento de olhos fechados, só timo olhar sobre a cidade e as
Os meses seguintes até a morte ousou abri-los quando estava na pessoas, como se estivesse a
de Antonio foram para Violeta frente da caixa de correspondên- despedir-se do que não tinha
Sanches uma provação divina, cia. Ali mesmo conferiu as cartas, sido seu. Experimentou o ven-
diferentes do tempo atual. Agora, não havia nada informando a to quente ressecar-lhe a pele e
ela ria quando a brisa fazia cóce- chegada dos parentes, somente embaraçar-lhe o cabelo. Uma
gas em seu nariz, tocava piano pacotes com revistas de moda lágrima desceu-lhe aos lábios.
uma vez por semana e deixava-se que a cunhada lhe mandava. Es- De súbito, sentiu sobre si um
ficar todas as manhãs no portão, a forço inútil, agora tinha de voltar olhar curioso, ouviu passos
observar o movimento na avenida e viver de novo. Virou-se e con- que lembravam os de Antônio
que ganhava cada vez mais au- templou a enorme construção e uma voz doce, quase idêntica
tomóveis. Sentia-se jovem ainda; diante de si. Aquela casa tinha a de Alísio: “Bonjour, cunhada!
era, de fato, das que resistiam sido feita para ela: os arcos, os Preparada para a viagem?”.
muito ao peso dos anos. Corre- jardins, a rampa, o destino de
spondia-se com uma irmã de An- quem ali habitasse; desde os pi-
tonio que vivia na França em com- lares fora planejada para uma in-
panhia do irmão caçula, e decidira válida, antes mesmo do acidente
aceitar o convite para morar com
os dois. Combinaram a ida, ambos
viriam buscá-la. Na manhã em que
foi embora para sempre da casa,
lembrou-se exatamente de checar
o correio para saber da chegada
dos cunhados, quando a sua vida
ressurgiu, silenciosamente, pois
20. Adendo ao Conto O Prenúncio
Este conto é uma narrativa chamava José Maria Cardoso, classe social em ascensão, tra- É o homem de barba branca
ficcional baseada em histórias português, negociante de ma- duzido através da monumen- no expresso Parangaba - Mu-
ouvidas a respeito do casarão deira para a construção de talidade, da estética exótica e curipe que brada ter conhecido
na Avenida João Pessoa, nº ferrovias no Ceará, era casado do porte da estrutura de con- o “bendito português”, tinham
5094. Muito se fala sobre a e tinha um filho. A casa foi in- creto (...) Ressalte-se a adequa- sido até amigos na juventude!;
Casa do Português, mas pouco augurada em treze de junho de da implantação da residência, é o vizinho quase centenário,
se sabe ao certo sobre a vida de 1953, com tamanho que ainda que favorece a iluminação e que vendeu os azulejos Kab-
quem ali morou, salvo pesqui- hoje tem, apesar de nunca ter ventilação dos vários ambi- lin usados no revestimento da
sas acadêmicas e registros his- sido ocupada por completo entes, sobretudo nas varandas cozinha da casa; é a moça que
toriográficos do antigo Bairro nem mesmo pelas sete famílias e em toda a área de lazer nos passa em frente quase cor-
Damas, reduto de sossego na que lá residem sob autorização dois últimos pavimentos. Por rendo, ao retornar da escola,
Fortaleza que crescia ao início dos legatários. todos esses aspectos citados, a temendo o prédio “mal-assom-
do século XX. Hoje o prédio é tombado edificação ainda hoje constitui brado”. Todas testemunhas de
Para a escritura deste con- pela Fundação de Cultura, Es- marco visual no entorno, dis- suas próprias histórias, docu-
to, foram levados em consider- porte e Turismo de Fortaleza tinguindo-se das demais.” mentos da lembrança ou de-
ação somente dados referentes (Funcet), sob justifica e de- A arquitetura incomum vaneio, cada qual com uma ex-
à estrutura da casa, ao mo- scrição integrantes do proces- chamou atenção dos órgãos plicação óbvia para construção
mento em que foi construída e so: “Edifício em bloco único, públicos para a importância da de uma casa tão grande para a
seus primeiros anos, ou seja, as de forma retangular, de dimen- casa como patrimônio mate- família pequena do português,
décadas de 1950 e 1960. Para sões 33m x 14m, possui quatro rial, mas o imaginário popular para a rampa em detrimento da
tanto, tomaram-se precauções pavimentos e está a o nível da faz tempo a eternizou relíquia, escada, para os arcos que con-
durante a pesquisa. Procurou- rua, no centro do terreno, com daquelas que se contempla tornam os pavimentos, para o
se não adentrar demais o ter- afastamento de cerca de 18m tentando adivinhar o passado. teto jardim que coroa toda a
ritório da realidade para não da via principal e com recuos Não é difícil andar pelas imedi- estrutura. São esses os aponta-
perder o mote da criação base- laterais. É contornada pela ações da Avenida João Pessoa mentos trespassados pela sub-
ada em narrativas colhidas em rampa em forma de ferradura, e encontrar quem fale da Casa jetividade do narrador que se
andanças pelo Damas. A quem que tem presença marcante do Português nomeando-se privilegia no conto – registros
possa interessar a busca por no conjunto e que dá acesso a testemunha ocular da história da memória e da imaginação
registros historiográficos, seg- todos os pavimentos. Padrão do imóvel – Fortaleza tem que constituem a prova de que
uem alguns apurados de início: diferenciado para a época, que desses personagens mais fan- a mente humana se apropria
o primeiro dono do prédio se revelava os valores de uma tásticos do que reais. do inexplicável.
21. A Loucura
H
que margeia
Fortaleza ospício glob-
al. Esse termo,
lançado para o
mundo num dos
livros mais vendidos do Brasil,
o Vendedor de Sonhos, parece
representar bem a realidade em
que vivemos atualmente. Talvez
por isso, o livro com um título
tão inusitado esteja suscitando
Por Lívia Nunes
tanta curiosidade entre leitores
Fotos de Chico Célio
brasileiros.
Buscando enquadrar-se no
sistema, homens e mulheres es-
condem-se por trás de roupas
de grife, carros do ano, sorri-
sos vendidos. Mantendo a falsa
ilusão de serem felizes. Como
resultado a tanta pressão, jo-
gos de aparência, luta pelo
poder, cresce uma população
cheia de medos e marcada por
distúrbios mentais, como a de-
pressão, e a esquizofrenia. Sem
falar nos transtornos de humor
e ansiedade.
22. Como atestam os psicólo- mentais. O que equivale a 5 mil- para superá-los. pode ter um adoecimento emo- mentais, e isso vai da classe
gos, a loucura anda junto com hões de jovens. Para a psiquiatra, esses cional”, enfatiza. social alta a classe social mais
a normalidade. Nos dias atuais, Em Fortaleza, ainda não ex- números refletem “os males da Quanto a ligação entre po- baixa. “Essa coisa do determin-
a linha que separa esses dois iste uma pesquisa que demon- vida moderna, sobre uma so- breza e loucura, a psiquiatra ismo é complicada (...) Não é
mundos parece estar ainda strem esses números. Mas ciedade competitiva, que pres- Nara, vê a miséria como um porque a pessoa é pobre que
mais tênue. A prova disso está considerando os dados da Or- siona cada vez mais o indivíduo fator estimulador na deflagra- ela vai ter o transtorno. Precisa
nas ruas, nas praças, nos becos, ganização Mundial da Saúde a ser o melhor”. Outro fator que ção de distúrbios mentais. “A de uma série de fatores. Tem
nas calçadas ou escondidos em que afirma que cerca de 3% da explica o aumento dos casos de pessoa pode ter uma vulnera- morador de rua que não tem
quartos escuros. população, em qualquer lugar transtornos mentais é o fato bilidade específica, que quan- o transtorno mental. O que vai
Andar nas ruas de Fortaleza do mundo, está sujeita a de- das pessoas estarem mais aten- do influenciada por um fator determinar isso é a estrutura
– no centro da cidade em es- senvolver transtornos mentais. tas à divulgação das informa- estressor importante permite de cada um”, destaca.
pecial – nos dá uma dimensão Podemos estimar que existam ções pela mídia e ao progresso que os sintomas se desenvol- Contudo, estima-se que
dessa realidade. Esbarrar com cerca de 750 mil pessoas em da psiquiatria nos últimos anos. vam”, observa. A miséria é as doenças psiquiátricas têm
“loucos” já não é uma cena in- Fortaleza propensas a desen- “Encontra-se mais porque sim- uma delas! Já para uma das co- grande chance de se desen-
usitada. Os números confir- volverem algum transtorno plesmente procura-se mais”, ordenadoras da Rede de Saúde volver na pobreza, onde va-
mam essa tendência mundial mental. destaca. Mental de Fortaleza, a psicóloga lores humanos são esquecidos
a doenças mentais. Estima-se Segundo a psiquiatra Nara Já a psicóloga e coordena- Raimunda Felix, as pessoas po- e massacrados pela dor, fome e
que 15% da população mun- Fabíola Costa de Brito, os dis- dora do Caps xxx, Daniela xxxx, dem enlouquecer em qualquer rejeição. “Nenhum antidepres-
dial (975 milhões de pessoas) túrbios mais encontrados em acredita que esse aumento é classe. “O determinante social sivo vai aliviar a dor de não ter
precisem de atendimento em Fortaleza são depressão e tr- em resposta a um grande vazio tem uma influencia, mas não é a o que comer, o que vestir, de
saúde mental. No Brasil, 28,3% anstornos de ansiedade em existencial, que possibilita que causa. Não pode ser vista como viver inseguro, com medo da
milhões sofrem de algum tran- geral. “O transtorno depressivo essas crises eclodam. “Eu ficar a causa primeira”, rebate. violência urbana (...). A questão
storno mental, conforme dados é muito comum e a prevalên- falando apenas de crise exis- Já a coordenadora do Caps é puramente social e não de
do Ministério da Saúde. cia estimada durante a vida é tencial é um pouco burguês acredita que a história de vida, saúde pública”, critica
Um dado preocupante é o de 15%. O transtorno afetivo demais, porque nós temos out- o histórico familiar, o contex- Nara.
número de jovens que apre- bipolar tipo I é estimado em ras questões também, como a to em que se vive pode Para Dan-
sentam sintomas de doenças 1%, semelhante às taxas para pobreza, a falta de freios. Mas propiciar ou não iela xxx,
mentais. De acordo com pes- esquizofrenia”, informa. Outro nada disso é determinante soz- a eclosão de essa
quisa realizada pela Associa- distúrbio com grande incidên- inho. Temos que considerar a doenças
ção Brasileira de Psiquiatria, cia são as fobias, entretanto, por historia da pessoa, como ela
estima-se que existam, aproxi- desconhecerem os sintomas, os viveu, como ela se estruturou,
madamente, 12,6% brasileiros, indivíduos portadores desse tr- para ver se ela vai ter um surto
entre 6 e 17 anos, com doenças anstorno não procuram auxílio ou não. Qualquer um de nós
23. realidade de dor e medo é vi- abandono em que se encon- Segundo dados fornecidos amento. “A gente trabalha com
venciada no cotidiano dos Caps, tram as pessoas com transtor- pelo Relatório, ao longo de o que o território apresenta
aonde, diariamente, chegam nos mentais. A contratação de 2008, a SMS fez um investimen- de potencialidades”, ressalta
várias pessoas - trazidas por equipes de saúde mental, a es- to financeiro de R$ 8.380.775,59 Raimunda Felix.
amigos, familiares ou vizinhos truturação dos serviços, a qual- com a Rede Assistencial de Apesar dos avanços perce-
-, buscando ajuda após tentar o ificação profissional, o incentivo Saúde Mental. Dos quais, R$ bidos no tratamento de doen-
suicídio. ao controle social e a discussão, o 1.926.401,79 foram destinados ças mentais, há muito a ser
Desmistificando a idéia de planejamento e avaliação do pro- a parcerias com instituições feito. Como atesta o Relatório é
que a pessoa com distúrbio cesso de implantação da Reforma que produzem serviços espe- necessária uma melhor articu-
mental é perigosa para a so- Psiquiátrica em Fortaleza, que cializados, como formação de lação entre os serviços da rede
ciedade. Nara alerta: “É tão visa a desinstitucionalização e a pessoal e consultorias em saúde assistencial, para reduzir inter-
perigoso quanto qualquer pes- inclusão social, mental. No que nações sucessivas nos hospitais
soa dita “normal”. De acordo são algumas diz respeito psiquiátricos; garantir psicofár-
com a psiquiatra, o psicótico dessas ações. As mudanças nos à assistência macos de forma continuada e
ou neurótico só irá se defender Como parte farmacêutica, sistemática; capacitar profission-
- segundo a lógica dele, é uma do plano de houve um inves- ais do SUS para exercitar a escuta
defesa, não um ataque – das desinstitu- resultado boas mé- timento total de e dar suporte ao sofrimentol;
tratamentos têm
pessoas que a mente delirante cionalização, R$ 1.072.358,34 fortalecer o trabalho de inclusão
dele considere como um pos- os hospitais para compra de produtiva, dentre outros.
dias.Somente em
sível perseguidor. Raimunda psiquiátricos 2008, houve uma psicotrópicos. De acordo com a psiquia-
Felix também defende a mesma estão sendo Uma novi- tra Nara Brito, o modelo ideal
opinião. Para ela, essas pessoas substituídos,
redução de 200% na dade no que se de assistência à saúde mental
são como qualquer outra. e seus antigos média de permanên- refere ao trata- seria aquele em os portadores
Para ajudar a desconstruir pacientes estão cia das internações mento de doen- de transtornos mentais graves
o imaginário popular de que sendo trata- ças mentais é fossem tratados no CAPS e as-
essas pessoas são perigosas, dos em CAPS, a Oca de Saúde sistidos por uma equipe mul-
a Secretaria da Saúde Mental Residências hospitais gerais. C o m u n i t á r i a , tidisciplinar, compostas por
psiquiátricas em
de Fortaleza está promovendo Terapêuticas e inaugurada em psiquiatra, psicólogo, terapeuta
encontros, rodas de conversa hospitaisgerais. 2007. Nela el- ocupacional, enfermeiro, assis-
e atividades socioterápicas, e As mudanças ementos sociais tente social, dentro de um pro-
fechando parcerias com out- nos tratamentos têm resultado e culturais da comunidade do jeto terapêutico individual, de-
ras secretarias – Secretaria de boas médias. Somente em 2008, Conjunto São Cristovão, como senvolvido em conjunto com a
Desenvolvimento Econômico e houve uma redução de 200% na curandeiros, artistas populares, equipe de referência e visando
Secretaria de Meio Ambiente -, média de permanência das inter- poetas são agregados, a fim de a reinserção social e a deses-
a fim de inserir os pacientes dos nações psiquiátricas em hospi- preparar o grupo para os de- tigmatização. Em momentos
CAPS em trabalhos solidários. tais gerais. Antes, os pacientes safios do dia-a-dia e estimular de crise, deveria ser assistido a
De acordo com o Relatório passavam, em média, 40,6 dias a consciência social. Com um nível hospitalar, de preferência
de Gestão de Saúde Mental nos hospitais psiquiátricos, tratamento mais alternativo, em leitos psiquiátricos em hos-
2008, entre 2005 e 2008, di- agora, sendo tratados em hos- que visa a prevenção e a cura, pital geral, por curtos períodos.
versas ações foram executadas pitais gerais, a média caiu para a Oca utiliza práticas de mas- Para a psiquiatra, a idéia do
visando mudar o quadro de 13,3 dias. soterapia, argiloterapia e relax- CAPS é um pouco distorcida
24. em níveis locais. “O CAPS nasceu está sendo construído é o caminho terapêuticas, os freqüentadores
como um serviço substitutivo às da transculturação, no qual a so- do CAPS participam de grupos de
internações psiquiátricas, tendo ciedade mudará sua lógica na com- conversa, oficinas, atendimento
como público-alvo psicóticos e preensão e aceitação da loucura, psicoterapêutico individual, ativi-
neuróticos graves e não pacientes como sendo inerente à natureza dades de relaxamento, em que a
com transtornos leves que de- humana”, concluiu a Coordenação arte, através da música e atividades
veriam ser atendidos em ambu- Colegiada de Saúde Mental. corporais e manuais, é usada como
latórios de psiquiatria”, adverte. terapia e forma de expressão.
A médica, que não defende nem o Vindos de vários mundos,
modelo “CAPScêntrico” nem “hos- diferentes realidades e abatidos
Um sonho de liberdade
pitalocêntrico” – focados em CAPS Ao todo em Fortaleza existem por múltiplas causas desencadead-
e hospitais psiquiátricos respec- 14 CAPS, que, tecnicamente, dever- oras dos transtornos, os pacientes
tivamente -, vê na diversidade dos iam atuar em casos de transtornos do CAPS xxx encontram conforto
equipamentos a melhor forma de moderados e severo. Entretanto, a e amizade entre novos amigos,
tratar os pacientes. carência de residências terapêu- com semelhantes delírios e vidas
A coordenadora do Caps xxx, ticas, postos de atendimento oca- distintas, e médicos, psicólogos,
Daniele, admite: “Casos leves, na siona a sobrecarga dos CAPS, que terapeutas ocupacionais, artistas,
realidade, não são para serem trat- são obrigados a atuar em casos de farmacêuticos, assistentes sociais,
ados no Caps. Caps é para trata- transtornos leves. Em defesa ao que juntos lutam por uma vida
mento de casos graves e modera- fim dos manicômios e da reinser- mais humana e igual.
dos, onde há interrupção de vida ção dos pacientes na sociedade, Logo ao entrar no CAPS já se
social. Só que a nossa rede ainda através da convivência diária e da percebe que não estamos num
não está preparada para assumir volta ao trabalho, os CAPS surgi- lugar comum. Diferente do que
essa responsabilidade”. ram e vem se firmando como um poderíamos imaginar, é um lugar
A coordenadora Raimunda afir- importante meio de acolhimento e alegre, bonito e com variadas ro-
ma que embora ainda se conviva tratamento de pacientes com vari- tinas, sons e cheiros. Não é difícil
com os dois modelos, “o nosso ide- ados tipos de psicoses e neuroses. encontrar um personagem ansio-
al seria aquele que não precisasse Cientes da difícil realidade das so para falar de si e das suas idéias,
mais internar ninguém no hos- pessoas que procuram tratamento por vezes, fantásticas. Mas mais
pital psiquiátrico, onde pudésse- nos CAPS, os profissionais do CAPS ainda para serem vistos e ouvidos
mos dar conta disso nos hospitais XXX uniram-se aos pacientes, para como pessoas pensantes e ricas de
gerais e nos caps. Mas isso é uma juntos encontrar o melhor camin- subjetividade.
construção”. ho para alcançar a realidade ou, Ansiando adentrar aquele mun-
A Rede de Assistência a Saúde pelo menos, chegar mais próximo do em parte desconhecido, camin-
Mental teve um grande avanço, dela. “Uma vez mergulhado numa hei e, entre um passo e outro, fui
porém, “a consolidação de uma crise, quem vai dizer aonde quer encontrando personagens vivos
política que tem em sua essência chegar são eles. A gente vai dando para essa matéria. Ocupados em
a transformação do modelo assis- as ferramentas. Essa melhora é uma das oficinas ofertadas pelo
tencial e da cultura não acontece subjetiva em termo de retomada CAPS, encontrei quatro homens
em um curto período de tempo. de vida”, adverte Daniela. entretidos no trabalho de recu-
Acredita-se que o caminho que Envolvidos em atividades peração de uma mesa. Sociáveis,
25. sorridentes e simpáticos, eles pessoas vêm apenas para fazer
foram respondendo, entre risos, a manutenção. Muitas pessoas
a uma e outra pergunta que os se restabelecem e voltam a ter
fazia. uma vida normal. Trabalham,
Há dois anos envolvidos na estudam, namoram”, comem-
oficina de marcenaria, onde a ora. Segundo a coordenadora
terapeuta ocupacional Fernan- Daniele, alguns pacientes vêem
da Maria Ramos Barbosa faz um muito mais significado nas
trabalho de resgate da auto-es- tarefas que desempenham hoje
tima, do poder de decisão e do do que quando trabalhavam.
equilíbrio, todos são unânimes “Cada caso é uma caso. Cada
ao afirmarem com um sonoro caso é uma história”, pontua.
sim o prazer de participar dela. Apesar da curiosidade de
Fernanda observa que os bons saber um pouco sobre todos,
resultados devem-se as de- minha atenção se deteve num
cisões democráticas tomadas: homem de sorriso largo, dentes
“Tudo é feito com eles, com a perfeitos e roupa social. Eraldo
participação deles”. de Sousa Rocha, 40 anos, mo-
Segundo terapeuta, os re- rador do Montese, de pronto
sultados são positivos: “Muitas se destacou. Com português
26. correto, voz clara e detal- vulgar a mensagem de Deus”,
hada e algumas pausas para Eraldo elogia a profissão de
Saiba Mais
reflexão, ou mesmo pegar jornalista e lança a perguntas
>> O perfil dos pacientes dos Caps stornos mentais de um modo
fôlego, Eraldo não se inibiu que me deixa sem resposta:
são de pessoas que sofrem de tran- geral; 06 CAPSad, para pessoas
ao falar sobre si a uma curio- Você teria coragem de fazer
storno mental grave a moderado, que apresentam uso ou abuso
sa desconhecida. uma reportagem na Faixa de
como depressão, pânico e esquizof- de álcool ou outras drogas e 02
Adorador de Deus e dos Gaza? Não demorou muito
renia. CAPSi, voltados para crianças e
assuntos ligados à galáxia, o para eu inverter a situação,
adolescentes;
filho de mãe viúva e tio de 10 ao perguntar sobre o grande
>> Compõem a Rede Assistencial 1 Residência Terapêutica; 1
sobrinhos, disse que além de amor dele. Eraldo soltou uma
de Saúde Mental de Fortaleza: 14 Unidade de Saúde Mental em
ler a bíblia, gosta de assistir sonora gargalhada e limitou-
CAPS - 06 CAPS Gerais, para tran- Hospital Geral, com 30 leitos; 1
ao jornal. “Eu gosto porque se a afirmar: “tem que casar”.
Serviço Hospitalar de Referên-
mostra a realidade”, comenta. O homem que prefere orar
cia em Álcool e outras Drogas,
com 12 leitos; 2 Emergências
Contraditório ou não, o certo a rezar, faz casinhas porque
Psiquiátricas Especializadas
é que ele seguiu falando de parecem com igrejas e acred-
e 09 Emergências Clínicas em
Deus. Entre uma conversa ita que Israel dominará o
Hospitais Municipais, 18 Equipes
e outra, Eraldo disse que já mundo sofre de esquizofre-
de Apoio Matricial em Saúde
traduziu uma bíblia do in- nia, mas parece não se in-
Mental, apoiando ações de
glês para português e que, comodar ou não perceber
saúde mental na Atenção Básica;
nos momentos livre, gosta de problema nisso. Alto astral,
3 Ocas de Saúde Comunitária,
fazer poemas evangélicos. ele nos prestigia com alguns
que realizam atividades de pro-
Mas esse jovem senhor, versos: “Adoremos a Deus em
moção de saúde, com os grupos
com alegria de criança, con- espírito e em verdade, pois
de resgate de auto-estima, e
massoterapia.
tinua surpreendendo. Ex- a sua volta está próxima. O
recepcionista de um hotel filho de Deus, Jesus Crido de
>> Hospitais que fazem parte da
quatro estrelas de Fortaleza, Nazaré”.
Rede Assistencial Hospitalar:
Eraldo garante falar inglês e
Hospital Nossa Senhora das
francês e engata um diálogo
Graças e Hospital Gonzaguinha
em francês, um pouco con-
da Barra do Ceará para o aten-
fuso, como nosso fotógrafo.
dimento dos usuários através
Outra supressa foi a revela-
do internamento clínico e/ou
ção de que mantém contato,
psiquiátrico no Hospital
via cartas, com a Sociedade
Clínico; Hospital Batista Memo-
rial – Unidade de Saúde Men-
Bíblica Trinitariana, na In-
tal Ana Carneiro/Instituto Dr.
glaterra. O que garantiu brin-
Vandick Ponte para internação
cadeiras e risos dos amigos.
psiquiátrica dos usuários dos
Porém, Eraldo não se inibiu
CAPS.
e continuou respondendo às
perguntas.
Mesmo preferindo ter
cursado informática “para di-
27. S
Lutas antimanicomiais anseiam o fim do isolamento
egundo a psicologia, a com as devidas justificativas. disso. Somente nos últimos quatro quantidade de usuários internados
loucura ou insânia é a Essa Lei tem impedido que mui- anos o número de CAPS pratica- por transtornos mentais esquizotípi-
condição da mente hu- tas arbitrariedades sejam cometidas. mente quintuplicou em Fortaleza. cos e delirantes e transtornos do hu-
mana caracterizada por Quem nunca ouviu falar, nem que seja Pulando de três para 14. mor (afetivo), em Fortaleza, reduziu
pensamentos considerados anor- por meio das telenovelas brasileiras, De acordo com o Relatório de em 24,07%. Conseqüentemente a
mais pela sociedade. As doenças casos de pessoas sãs ou com peque- Saúde Mental e Cidadania 2008, da essa redução, o valor total pago pe-
mentais, comumente enquadradas nos surtos nervosos que foram inter- Secretaria de Saúde de Fortaleza, “a las internações psiquiátricas refer-
como loucura, existem há cente- nadas por familiares de forma irre- implantação de uma rede de serviços entes aos diagnósticos dessas doen-
nas de anos. Entretanto, a história sponsável ou maldosa. Muitas delas substitutivos ao hospital psiquiátri- ças também diminuiu.
da loucura vai ganhando sentido e acabaram de fato perdendo a luci- co fundamenta-se nos princípios Em contrapartida, houve um au-
conotações diferentes conforme a dez e estão até hoje trancafiadas em do SUS, da Reforma Psiquiátrica, da mento de cerca de 280% no número
época. muitos hospitais psiquiátricos que Luta Antimanicomial, da Política de de visitas domiciliares e institucio-
Se na Idade Média o louco era ainda existem Brasil a fora. Humanização”. Segundo Raimunda nais e um acréscimo de aproxima-
visto com certo misticismo, até mes- Com o objetivo de transformar Felix, um dos serviços dentro desse damente 590% do número de aten-
mo como sagrado, a partir do século esses hospitais em locais de passa- modelo é a unidade de internação dimentos individuais. Em relação ao
XVII, o louco vai ser visto como per- gem e, posteriormente, extingui-los, dentro do hospital geral. número de atendimentos grupais e
turbador da ordem social, tornando- as lutas antimanicomiais propõem Na proposta de desinstitucional- atividades comunitárias, houve um
se um excluído, relegado ao confina- a reinserção desses pacientes aban- ização da loucura em Fortaleza está a aumento de cerca de 390%, compa-
mento. Com essa mudança na forma donados e esquecidos no tempo. criação das Redes Assistenciais Hospi- rando os anos de 2006 a 2008. Para
de ver o louco, surgem os primeiros Segundo a coordenadora da Rede talares em substituição aos hospitais a coordenadora, esse aumento deve-
internamentos. Ao contrario do que Assistencial de Saúde Mental de For- psiquiátricos e a garantia de acesso se a abordagem aberta dos CAPS em
poderia se pensar, os hospícios não taleza, Raimunda Felix de Oliveira, aos serviços comunitários, evitando contato direto com a comunidade.
foram criados para curar ou tratar e, essa luta é defendida pelo municí- a internação e a permanência de pes- Apesar das muitas conquis-
sim, para evitar que os loucos ficas- pio: “A gente aqui em Fortaleza tem soas com transtornos mentais em hos- tas alcançadas ao longo dos anos,
sem vagando nas ruas das cidades. a política municipal de saúde mental pitais psiquiátricos. é preciso criar ainda uma rede de
Maus tratos, medo, preconceito, que é baseado no fim dos hospitais Assim, a partir das Redes Assisten- saúde mental sólida e integrada em
discriminação. São algumas das pa- psiquiátricos e na substituição desse ciais, usuários dos hospitais psiquiátri- Fortaleza, que garanta atendimento
lavras associadas aos manicômios. modelo por um modelo de atenção cos de Fortaleza estão sendo transferi- de qualidade e o acompanhamento
Visando desmistificar a idéia de loucu- psicossocial”, observa. dos para uma Residência Terapêutica, com profissionais qualificados e ex-
ra e inserir pessoas com transtornos Diferentemente de 30 anos atrás, onde será iniciando um processo de perientes. A rede de saúde mental é
mentais na vida em comunidade, as Lutas Antimanicomiais já alcan- ressocialização e de resgate da cidada- basicamente baseada em hospitais
surgiram as Lutas Antimanicomiais çaram uma longa lista de conquistas. nia. “As residências são casas de mo- psiquiátricos e CAPS. É necessário
nos anos 70, que deram início à Re- A reformulação do modelo de Aten- radias para as pessoas que não tem diversificar. “Precisa haver mais
forma Psiquiátrica, definida pela Lei ção à Saúde Mental, que prega o fim nenhum vinculo familiar, que são mo- residências terapêuticas, CAPS, am-
10216/2001 (Lei Delgado). Nela um da instituição hospitalar em prol de radoras de hospitais psiquiátricos há bulatórios de psiquiatria, centros de
dos seus artigos diz que o Ministério uma Rede de Atenção Psicossocial, muito tempo” explica Raimunda. convivência, leitos de psiquiatria em
Público deve ser comunicado até 72h estruturada em serviços abertos e Como resultado da política An- hospital geral”, argumenta a psiquia-
todas as internações psiquiátricas, comunitários, é um bom exemplo timanicomial, entre 2005 e 2008, a tra Nara Brito.
28. O
Perfil
O mundo de imaginação do poético homem sem razão
mundo de imaginação do Parecem escolher permanecer na in-
poético homem sem razão diferença, desviando o olhar quando
Se antes as pessoas com confrontados.
distúrbios mentais mantin- O que se percebe, como observa-
ham-se isoladas da sociedade, esta dor oculto, é uma tensão pairando no
lógica está sendo invertida. É comum ar. As pessoas fingem conviver com
encontramos pessoas com transtor- naturalidade, com aquele homem
nos mentais perambulando pelas em plena efervescência mental, mas
ruas de Fortaleza. Abandonados, fu- fecham-se em si, a fim de evitar con-
gitivos? Não se sabe! O certo é que frontos, talvez com seus medos, pre-
esses personagens inusitados perme- conceitos ou temores.
iam as entranhas da cidade, procla- Os que conhecem o jovem, que
mando frases soltas, brigando com o dorme nos arredores do bairro, pro-
inconsciente ou dando respostas aos tegido dos intempéries numa agência
sofrimentos humanos. bancária das proximidades, afirmam:
Aos freqüentadores da pracinha “Quando ele era bom (lúcido) sempre
da Gentilândia, no Benfica, não deve falava do sonho de voltar pra família”.
ter passado despercebida a presença Segundo Miltinho, homem conversa-
de Nelson. Mesmo por trás de uma dor que trabalha vendendo lanches
barba espessa, pele curtida pelo sol e numa das barracas da praça, Nelson
vastos cabelos desgrenhados, perce- sempre dizia que iria mandar uma
be-se um jovem, com pouco mais de carta para o programa do Gugu Lib-
24 anos, de rosto sofrido e olhos ex- erato para que o ajudassem a voltar
pressivos. Vestido com farrapos e de para família.
pés descalços, o antigo flanelinha, que Contudo, anos passaram, sonhos
hoje vive de ajuda, passa seus dias per- passaram e com eles levaram a luci-
correndo a praça e proferindo frases, dez de Nelson. O homem, meio bicho,
para muitos, incompreensíveis meio criança, que hoje circula sem
Com passos firmes, ele transita rumo pelas ruas do Benfica, encon-
entre os passantes, buscando, com tra alegria mesmo nas coisas simples.
olhar ávido, alguém que lhe dispense Brincar de ligar e desligar o medidor
um pouco de atenção. Entretanto, os do poste, tornou-se seu passatempo.
que passam, embora alimentem curi- Fazer ginástica no meio da praça e
osidades e se indaguem quem é essa jogar bola com a garotada também
pessoa? O que faz? Onde vive? Como faz parte das suas distrações.
chegou a esse estágio de loucura? Entretanto, nem sempre os dias
29. são bons, e nos momentos de “Ele era muito zeloso. Andava identidade preservada, diz que hando sem rumo, parando às Citando o poeta dos lou-
raiva e agitação, descarregar todo arrumado, limpo”, acres- há 12 anos conhece Nelson e vezes para cantarolar alguma cos, Raul Seixas, diria que esse
as energias batendo, socando centa uma das moças. Longe que em todos esses anos nunca música ou ensaiar alguns pas- homem, de um nome só, de in-
ou chutando um outro poste, do mundo real há quase quatro apareceu nenhum familiar do sos. Foi num desses momentos disfarçável conotação, o tal Fil-
torna-se a sua econômica e nem anos, o homem de pouco passa- colega. Entretanto, Nelson ga- de passeio que, na tentativa de ho de Campeão, Nelson, talvez
tão saudável válvula de escape. do, que vive há 18 anos nas ruas, rante que sempre viveu em For- um diálogo, invadi o universo pense: “Enquanto você se es-
Mas Miltinho garante: Ele não é cruza despercebido pelos olhos taleza e que os familiares moram imaginário de Nelson e travei força pra ser um sujeito normal
violento, ele não mexe com nin- das autoridades e da sociedade nas proximidades. uma breve conversa. Desconfia- e fazer tudo igual. Eu do meu
guém!”. mascarada de “boas intenções”. Querido por companheiros do, ele olhava, baixava a cabeça lado aprendendo a ser louco.
Recordando o Nelson son- Tratando-se de Nelson, as dos tempos de sobriedade e aju- e mexia nos cabelos. Parecia es- Maluco total, na loucura real... E
hador do passado, Miltinho e informações mesmo reais pare- dado por conhecidos, o homem tar vendo um ser de um mundo esse caminho que eu mesmo es-
outras companheiras da labuta cem desencontradas. O amigo cabisbaixo, mas de sorriso largo distante do dele. Falou pouco, colhi, é tão fácil seguir, por não
lembram como ele era diferente. flanelinha, que prefere manter a e vibrante, passa os dias camin- sorriu e se foi. ter onde ir...”.